Obra em exposição no 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (Sesc Pompeia, São Paulo, 3 de outubro de 2017 a 14 de janeiro de 2018)
Prêmio de Residência no CCA Ujazdowski (Polônia)

Excerto de A.N.T.I. cinema
2015, 1’40”
O vídeo, formado por um único plano, registra um ensaio do grupo de percussão Ilú Obá de Min no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, com a câmera voltada para homens e mulheres que habitam a área.  

Comecei a trabalhar com esse formato de “excertos” – vídeos formados por um único plano cada – no ano 2000, época em que eu e Mathias Fingermann, então meu aluno de teatro, fundamos o A.N.T.I. cinema (leia-se “anticinema”), cuja sigla acordamos em não revelar. Nós nos limitávamos a dizer que o A.N.T.I. cinema estava interessado na vida, nada mais. Como Dziga Vertov em 1923, queríamos arrancar do cotidiano trechos de energia autêntica. Como Cesare Zavattini, falávamos em deixar as coisas como elas são, quase que por si mesmas, criarem o seu próprio significado especial. Filmávamos ininterruptamente (sem cortes) por muito ou pouco tempo, elegendo posteriormente um único plano como o filme inteiro, podendo este plano coincidir com a duração da fita de vídeo (uma hora) ou durar poucos segundos. Nós utilizávamos o vídeo digital, mas, mesmo que estivéssemos trabalhando com VHS ou com película, a nossa técnica seria a mesma: o “excerto de A.N.T.I. cinema”. Assinávamos nossos trabalhos como fotógrafos, nunca como diretores.

Desde então, há 17 anos, colho trechos da vida cotidiana por aí. Os momentos menos produtivos se deram na passagem da minha câmera Sony Digital-8 (câmera que já era uma extensão de meu braço, de meu corpo) para o modelo maior Sony VX 2100 e depois, muito pior, na passagem desta para uma Canon 5D. Eu seguia trabalhando no formato de excertos, mas principalmente voltando a fitas brutas de registros feitos entre 2000-2007, para escolher excertos que integram o arquivo da minha obra Projeto Mutirão. Nunca deixei de gravar novos excertos, mas não com a mesma alegria de antes e muito raramente. Nos últimos anos, redescobri a minha prática com um celular I-Phone 4S, que foi o equipamento usado nesse registro Ensaio Ilú Obá de Min.

O que fiz nesse registro foi tão somente gravar pessoas que habitavam o baixo do Viaduto do Chá, no Vale do Anhangabaú, durante um ensaio do bloco de mulheres Ilú Obá de Min. Era o último ensaio do grupo antes do carnaval de 2015, em que elas homenagearam a escritora Carolina Maria de Jesus. No lugar de registrar as mulheres do Ilú tocando seus tambores e cantando, virei a câmera para essas pessoas que ali moravam e interagiam com o ensaio, como público. Os tambores parecem ter revirado toda uma ancestralidade daqueles corpos – o candomblé, o feminino, as entidades/rainhas. Prefiro não descrever e não comentar muito porque quero que as pessoas vejam o vídeo e tenham (ou não tenham) seus próprios encantamentos. Gravar em plano único é uma forma de possibilitar que o espectador/a espectadora vivencie a duração da ação filmada, um pouco como se tivesse estado lá também. Mas uma coisa que posso dizer é que no momento político atual, quando se fecham radicalmente as políticas de bem estar social no Brasil, e o atual prefeito de São Paulo anuncia uma privatização cada vez mais intensa do espaço público e práticas de internação compulsória de usuários de crack, fica ainda mais evidente e relevante a prática de resistência do Ilú, essas mulheres negras que insistem em realizar seus ensaios na rua, nos baixos de um viaduto, engajando a população mais excluída da cidade. Como disse a minha amiga Juçara Marçal, cantora e integrante do grupo, este registro mostra, ao mesmo tempo, uma realidade dura e uma cura possível.

Graziela Kunsch
setembro de 2017 – depoimento dado à equipe do Videobrasil para a Plataforma VB

Observação: Não uso a expressão “plano-sequência” para nomear os planos únicos, mesmo quando longos, porque ao criar esta expressão André Bazin estava se referindo a planos de filmes que cumpriam a função dramática da seqüência de planos no esquema de decupagem clássica. Uma análise do meu trabalho exige outro vocabulário; de modo a explicitar que o que faço é tão somente extrair um trecho de um material bruto. “Excerto”, no Moderno Dicionário Michaelis, significa: (adj) tirado, extraído. (sm) trecho.

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Matérias publicadas por ocasião do 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil:

Veja 12 trabalhos imperdíveis no Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Exposição ocupa o Sesc Pompeia até janeiro e traz um panorama da produção do chamado sul global
Por Paula Carvalho
Bravo!, 4/10/2017
Trecho: “Graziela Kunsch traz duas obras importantes no Festival: o Ensaio Ilú Obá de Min se passa sob o som do bloco afro de mulheres de São Paulo, mas não as enfoca. Os protagonistas do vídeo são homens e mulheres trans que vivem sob um viaduto e, durante a passagem do bloco, ganham a atenção da câmera por sua dança. (…) Graziela filmou escolas ocupadas em São Paulo em novembro e dezembro de 2015 e mesclou suas imagens com fotografias anônimas da internet. A disposição das carteiras, limpeza e organização dos pátios mostram a ressignificação das escolas para os alunos secundaristas a partir da tomada dos prédios e da luta contra mudanças impostas pelo governo do Estado sobre a educação pública”.

A arte como laboratório da liberdade no 20º festival Sesc_Videobrasil. Mostra em São Paulo reúne obras que propõem novos olhares e saberes sobre questões urgentes
Por GG Albuquerque
Jornal do Comércio, 10/10/2017
Trecho: “Em sintonia com esta ‘virada’ do olhar, o trabalho de Graziela Kunsch é outra referência brilhante. Em vez de mostrar diretamente o ensaio do grupo Ilú Obá de Min, o vídeo mostra como moradores de rua recebem o som dos tambores, dançando e fazendo pose para a câmera”.

Depoimento de Juçara Marçal no Facebook
“O Ilú Obá de Min é um grupo de percussão de mulheres. O Ilu Obá de Min celebra e leva para as ruas a beleza da herança africana, exaltando e representando os Orixás, homenageando mulheres negras guerreiras de nossa arte e cultura. Só por isso, esse grupo já seria motivo de muito orgulho. Mas além disso tudo, e mais um tanto de coisas, o Ilú Obá faz suas oficinas nas ruas do centrão de São Paulo. Nossos ensaios, por isso mesmo, dividem espaço com moradores de rua, meninos, mulheres, homens, com a triste realidade de estar ali, sem casa e sem alento. Ver nosso canto, nosso batuque, nossa dança, abraçar de alguma forma essas pessoas e tornar a vida delas um pouquinho mais alegre é das coisas mais emocionantes. E a Graziela Kunsch fez esse registro. Maravilhoso. Cinema da mais alta qualidade, ali captado em meio ao nosso ensaio! Mostrando uma realidade dura e uma cura possível”.