Há muitos meses não entro aqui e não sei se esta publicação irá circular ou ser vista por alguém. Mas estou me preparando para uma aula que vou dar hoje no curso de extensão “A arte militante contemporânea”, na Unifesp, organizado pela professora Yanet Aguilera e o grupo de pesquisa MAAR, envolvendo um monte de gente interessante da América Latina, e fiquei com vontade de compartilhar aqui a obra-arquivo “Excertos da Vila Itororó”. Faz dois anos que não publico nenhum excerto ali e já estou distante da Vila (imagino que vou levar uns anos até conseguir estar de volta neste contexto, atuando e documentando). Então hoje estava vendo o meu próprio trabalho como público. Encontrei coisas que eu mesma já não me lembrava, como os espaços em branco, com excertos por vir. Reli o lindo texto do Benjamin Seroussi, que foi meu curador nesse processo. É um trabalho carregado de tempo e que exige também tempo de dedicação de quem quiser vê-lo. Deixo aqui a página https://vilaitororo.naocaber.org/ para quem quiser se aventurar. Às vezes o link está indo erroneamente para outro arquivo meu, ainda em construção. É só tentar atualizar mais vezes, até dar certo. E quem quiser acompanhar a aula de hoje, será entre 17h30-19h30 e ficará pública no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=jjLaMlZsyJs
O nome da aula é “Prática documentária, filmes não realizados”.
(Post de Facebook, fevereiro de 2021)
Curso em Vitória-ES entre 5 e 8 de julho de 2017, na UFES e no Mucane – Museu Capixaba do Negro. Projeto Cápsula – curadoria de Clara Sampaio e Gabriel Menotti
Atividade aberta: Escuta-fala com Graziela Kunsch
A vontade de compartilhar experiências com quem tiver interesse em me escutar será igual à vontade de ouvir o que as pessoas quiserem me dizer
Em arte contemporânea, especialmente nas práticas de inclinação investigativa (de um determinado contexto, de um determinado grupo) ou de inclinação pedagógica, muito se fala na importância de “escutar”. Mas como se dá uma escuta atenta? Como ouvir o silêncio? Como silenciar, antes de falar? Como começa um diálogo verdadeiro? (mais…)
Trago aqui o projeto “Abertura para respostas inesperadas”, finalista do 1º Prêmio Select de Arte-Educação – Categoria Formador, de 2017. Começo com trechos do formulário de inscrição e finalizo com a minha fala no evento presencial do Prêmio, no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo.
Ficha de inscrição
data de início do projeto:
10/03/2015
Técnica/definição
Nesta inscrição uso o nome “respostas inesperadas” para nomear o pensamento educativo que construí nos anos 2015 e 2016, como responsável pela formação de público no projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, e também em meus projetos artísticos independentes. Não me inscrevo em nome da instituição, mas escolhi me posicionar na categoria “formadora” por não se tratar de uma obra de arte específica, mas da elaboração de um pensamento em educação, de uma prática educativa. Uma crítica comum às práticas educativas em instituições de arte, mais especificamente às visitas educativas, é que a condução quase sempre tem um objetivo certo. Mesmo que a condução assuma forma dialógica e que educadores façam perguntas ao público, existe a expectativa por respostas específicas. Quando a resposta esperada não é dita, o educador costuma soltar “Na verdade, …”, deixando claro que sua pergunta original era somente retórica. Educadores fazem perguntas cujas respostas já são por eles conhecidas, por vezes frustrando o público, que percebe que o diálogo que se dá ali não é verdadeiro. Nada do que o público disser será realmente relevante, pois tudo está definido antes mesmo que esse público exista como público.
Como realizar uma prática educativa de abertura, que só se complete no outro? Como fomentar uma atuação do público, que, mais que participante, pode se tornar criador? Como conduzir para respostas inesperadas?
Se esta inscrição for selecionada para o seminário, em minha aula irei discorrer sobre algumas proposições/experimentações que realizei, nos últimos dois anos, neste sentido. E devo preservar certo mistério nesta pequena apresentação, com o intuito de estimular que o júri que me lê seja, desde já, instigado a tomar parte nesta reflexão.
Descritivo cronológico
A data que escrevi mais acima, 10/03/2015, foi o meu primeiro dia de trabalho na Vila Itororó Canteiro Aberto. Inicialmente fui convidada para desenvolver um projeto artístico ali e somente a partir de 10/06/2015 me tornei responsável pelo então setor “Educativo”, que eu propus que passasse a se chamar “Formação de público”. (“Formação” não no sentido de ensinamento do público, mas de constituição do público do local e da própria noção de público). O pensamento educativo aqui implicado não se reduz às minhas práticas no Canteiro Aberto e elegi um recorte entre março de 2015 e dezembro de 2016.
Em que sentido o projeto propõe uma pedagogia para as artes?
Em arte e educação muito se fala em escutar. Mas uma escuta verdadeiramente ativa implica escutar o que ainda não conhecemos, ou que não controlamos, ou até mesmo condenamos. Abrir espaço para respostas inesperadas é criar um ambiente de aprendizagem mútua e democrática, que sustente conflitos de forma produtiva.
Certa vez li uma fala do cineasta Eduardo Coutinho sobre a sua prática como documentarista/entrevistador, que para mim diz muito da disposição que nós educadores precisamos ter diante dos diferentes públicos: “É uma necessidade imperiosa ter a colaboração do outro. E essa adesão ao objeto implica uma postura que chamo de vazio, no sentido que o que me interessa são as razões do outro, e não as minhas. Então, tenho de botar as minhas razões entre parênteses, a minha existência, para tentar saber quais são as razões do outro, porque, de certa forma, o outro pode não ter sempre razão, mas tem sempre suas razões”. (Acrescento que isto não impede que, em algum momento, as minhas razões saiam dos parênteses e também sejam colocadas na roda…) A recepção de uma obra de arte não precisa ser consensual – e talvez seja mais interessante que não seja –, assim como a construção de um novo centro cultural público (no caso da Vila Itororó) não pode ser tarefa exclusiva de um pequeno grupo de pessoas.
Público alvo e impacto em comunidades e grupos
Formar público não é o mesmo que atingir público. “Público alvo”, no meu entendimento, pressupõe a existência de um público dado, ou de públicos dados, e a realização de atividades direcionadas a esses públicos. E se invertermos essa relação, praticando uma escuta verdadeira, de modo que seja o público propositor daquilo que deseja? Que o próprio público se defina como público, até mesmo na recusa de participar de determinado processo?
Darei o exemplo do primeiro público que busquei engajar no canteiro da Vila Itororó: as pessoas que ali viveram, que hoje moram em prédios CDHU localizados na região. Se o projeto de transformar a Vila em um centro cultural tinha entre seus objetivos não revelados colaborar na gentrificação em curso no Bixiga, diversas atividades que aconteceram no canteiro em 2015-2016 podem ser compreendidas como uma resistência a esse processo. Em outras palavras, se há alguns anos famílias pobres foram retiradas do contexto, hoje existem esforços para que permaneçam na área. Que não sejam tratadas como objetos de um passado remoto, mas como sujeitos da construção de um centro cultural, no presente.
No âmbito da formação de público, destaco o engajamento de ex-moradores em três ações: 1) participação no coletivo do bairro, responsável por definir parte do uso da verba de programação; 2) organização das festas juninas em 2016 e 2016; 3) uso da Clínica Pública de Psicanálise, cujo impacto profundo somente elas e eles poderão expressar.
Vídeos sobre o projeto
Escolhi um único vídeo como suporte desta inscrição, que mostra um momento de brincadeira livre no canteiro da Vila Itororó: https://vilaitororo.naocaber.org/ (ver pág. 3, vídeo número 30)
No galpão do Canteiro Aberto existem estruturas de madeira como escorregador, balanço e paredinha de escalada para crianças brincarem, mas há também muito espaço livre, cantinhos, bolas e tecidos. No lugar de reduzir o programa educativo a uma grade de oficinas e visitas educativas, de diferentes modos foi estimulado o livre brincar – atividades não dirigidas e, no caso das crianças, sem mediação de adultos (que podiam ficar por perto, observando ou brincando também). Não havia ali um chão especial para se brincar, mas somente o entendimento do galpão – cujas portas ficam totalmente abertas – como uma extensão da rua. Se hoje já não são comuns brincadeiras de rua em São Paulo, no pátio da Vila Itororó essa cultura foi preservada até 2011, ano da retirada das famílias que viviam no local.
Documentação de práticas educativas da autora em anexo
A inscrição acima foi selecionada entre os 4 formadores finalistas do Prêmio. Segue o texto dito na ocasião:
Boa noite. Nos últimos anos, quase todas as vezes em que inicio uma palestra, conto ao público que a minha fala não foi previamente preparada. Que imaginei conteúdos para responder a cada demanda ou a cada contexto, ou mesmo um caminho possível, mas que a minha fala será formada ali, diante da plateia, na expectativa que as pessoas presentes acompanhem o próprio processo de formação do meu pensamento.
Por ocasião da divulgação do resultado da segunda etapa deste prêmio, nós selecionados como finalistas recebemos a demanda de enviar uma apresentação de slides já na ordem da nossa apresentação, que ocorreria somente em duas ou três semanas, já não me recordo ao certo. E que cada apresentação teria a duração máxima de vinte minutos.
A eficiência almejada nesse pedido me assustou. E decidi que não enviaria imagem nenhuma, e que faria uma reflexão crítica sobre essa eficiência.
A “eficiência” é descrita no dicionário como a “capacidade de produzir um efeito”. Mas o que é produzir um efeito na arte, ou através da arte? Ou, como tornar uma apresentação como esta, neste contexto, de um prêmio em arte e educação, de fato eficiente?
Alguém pode estar se perguntando por que uma pessoa que desejou ter mais tempo de fala está usando longos minutos para discorrer sobre isso, no lugar de simplesmente dizer o que tem a dizer.
É porque a experiência como formadora que trago aqui hoje só foi possível pela recusa de tudo ser definido de antemão, por uma pessoa sozinha ou um pequeno grupo de pessoas. Era preciso envolver o público no processo de definição. Ou, me corrigindo, constituir um público – que ainda não existia como tal – conforme o próprio processo caminhasse.
Mesmo que esta apresentação tenha sido previamente escrita, acredito que a desaceleração que proponho aqui possa estimular um maior engajamento de vocês na minha fala, ou no meu pensamento em educação.
Chamei a minha inscrição aqui no prêmio de “respostas inesperadas” para defender a pedagogia implicada em não controlarmos totalmente certos processos.
[ vídeo brincadeira livre ]
[ após o vídeo, passar para a próxima tela branca ]
Ao receber o convite do curador Benjamin Seroussi para assumir a posição de “coordenadora do educativo” do canteiro aberto da Vila Itororó, a minha primeira proposta foi cortarmos as palavras “coordenadora” e “educativo”, usando no lugar “responsável pela formação de público”. “Responsável” como a pessoa que responde por aquela função, e “formação” não como ensinamento do público, mas constituição do público local e da própria noção de público. Além disso, formar público não deveria ser confundido com atingir público. A expressão “público alvo” pressupõe a existência de um público dado, ou de públicos dados, e a realização de atividades direcionadas a esses públicos. E se invertermos essa relação, praticando uma escuta verdadeira, de modo que seja o público propositor daquilo que deseja? Que o próprio público se defina como público, até mesmo na recusa de participar de determinado processo?
A Vila Itororó, localizada na Bela Vista, compreende um conjunto de casas ao redor de um pátio e foi inaugurada em 1922. A Vila sempre teve como uso principal a moradia, mas desde os anos 70 existe um projeto de transformá-la em um centro cultural. Esse projeto foi retomado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em 2006, as famílias que moravam ali organizaram uma resistência coletiva contra o projeto, que durou mais de cinco anos, até serem retiradas dali. Elas conquistaram o direito de permanecer na região, em prédios CDHU verticais, mas não puderam escolher permanecer na Vila.
A Vila foi tombada como patrimônio e se encontra em processo de restauro, pelo Instituto Pedra junto à Prefeitura de São Paulo. No lugar de fazer uma obra de restauro durante anos de portas fechadas, para ao final desse processo inaugurar um centro cultural pronto, definido por poucas pessoas – definido por um prefeito, um secretário da Cultura e um pequeno grupo de arquitetos –, o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto consiste na construção cotidiana e coletiva, em pleno canteiro, de uma experiência de centro cultural. Não necessariamente o centro cultural do futuro, o que a Vila Itororó ainda virá a ser. Pois isso dependerá das pessoas do poder. Mas a construção de um centro cultural hoje, no presente.
Há dois sentidos implicados na abertura do canteiro de obras. O primeiro, compartilhar – e debater publicamente – o processo de restauro, de modo que as discussões não fiquem restritas aos órgãos do patrimônio. O segundo sentido, e para mim o mais potente, não se refere à materialidade das edificações (o que demolir, o que preservar), mas ao seu programa de usos. É a possibilidade de experimentarmos e debatermos potenciais usos futuros da Vila. Ou admitir que sobre o futuro nada sabemos, e que temos que encarar a Vila Itororó como ela é hoje, na espessura do presente. Já não é possível reverter a retirada dos moradores, pois a política habitacional do CDHU veta que famílias beneficiadas sejam novamente atendidas. (Teria que haver muita vontade política lá em cima e muita luta aqui embaixo). Mas de que outros modos elas e eles podem voltar a habitar a Vila? Como habitar a cultura? Como fazer um centro cultural habitado?
Essas foram as perguntas que fiz na primeira convocação aos ex-moradores, na forma de um panfleto e um cartaz, antes mesmo de o canteiro abrir as portas. Eu já tinha uma relação com essas famílias, pois em 2006 colaborei ativamente no processo de resistência, e fui até os prédios CDHU conversar sobre o novo momento do projeto de centro cultural. Contei que a equipe que estava trabalhando ali não era formada pelos agentes de expulsão das famílias, que havia um reconhecimento da violência de todo o processo e um desejo de colaboração. A primeira ação em que engajei ex-moradoras e ex-moradores foi o projeto artístico de Mônica Nador, e é também o primeiro exemplo que quero dar do que estou chamando de “respostas inesperadas”.
A obra da Mônica consistiu na criação de um arquivo de padrões visuais da Vila Itororó, na forma de pinturas estêncil, que foram produzidos em oficinas, ao longo de três meses. Os participantes das oficinas circulavam pela Vila e desenhavam detalhes de arquitetura – um piso de ladrilho hidráulico, uma grade, uma janela –, que eram convertidos em máscaras de estêncil. O que desenharam os ex-moradores? Uma árvore, um grafite de um muro e um puxadinho.
Sobre o puxadinho, conto a história de uma segunda resposta inesperada. Certa vez eu estava ao lado de uma ex-moradora da Vila, quando ela expressou a tristeza de ver que muitas casas pequenas haviam sido demolidas no início do processo de restauro. Eram casas térreas construídas nas últimas décadas, ao lado e atrás do casarão e ao redor da piscina, com tijolo baiano, que não geraram interesse arquitetônico. Eu comentei que estava feliz de ver que ao menos o puxadinho, bem no centro da fachada do casarão, ainda estava lá, resistindo, e que, para mim, é um símbolo da história recente da Vila e também deve ser compreendido como patrimônio. Ela respondeu: “O símbolo da Vila eram seus moradores”.
Em arte e educação muito se fala em escutar. Mas uma escuta verdadeiramente ativa implica escutar o que ainda não conhecemos, ou que não controlamos, ou até mesmo condenamos. Abrir espaço para respostas inesperadas é criar um ambiente de aprendizagem mútua e democrática, que sustente conflitos de forma produtiva.
Uma vez li uma fala do cineasta Eduardo Coutinho sobre a sua prática como documentarista/entrevistador, que para mim diz muito da disposição que nós educadores precisamos ter diante dos diferentes públicos: “É uma necessidade imperiosa ter a colaboração do outro. E essa adesão ao objeto implica uma postura que chamo de vazio, no sentido que o que me interessa são as razões do outro, e não as minhas. Então, tenho de botar as minhas razões entre parênteses, a minha existência, para tentar saber quais são as razões do outro, porque, de certa forma, o outro pode não ter sempre razão, mas tem sempre suas razões”. (Acrescento que isto não impede que, em algum momento, as minhas razões saiam dos parênteses e também sejam colocadas na roda…). A construção de um comum implica reconhecermos nossas distâncias e diferenças para, a partir delas, fazer algo junto.
Uma escuta verdadeira não significa uma instituição colher opiniões ou sugestões diversas do que pode ser feito. Ou não apenas isso. No canteiro da Vila, a principal forma de participação do público se dá no uso cotidiano que o público dá ao espaço. Como eu disse antes, as experimentações diversas realizadas no canteiro hoje poderão inspirar os usos futuros da Vila. Para que esses usos sejam diversos, abrangentes e mesmo surpreendentes, a proposta curatorial mais significativa para o espaço foi pensar o galpão de entrada no canteiro como uma grande praça, aberta a usos espontâneos pelo público. Um pouco como ocorre na marquise do Parque do Ibirapuera, nas áreas comuns do Centro Cultural São Paulo e como era o projeto original da rua do SESC Pompeia.
Junto dos primeiros usuários fui responsável por redigir um conjunto de “regras para usos espontâneos”, o que pode parecer uma contradição. (Afinal, espontâneo deveria ser espontâneo, não algo ordenado ou induzido. Mas há situações em que a gente precisa de alguma orientação, para chegar a ser livre). Essas regras podem ser quebradas, mas existem para fomentar uma atuação pelo público e tentar garantir a vida coletiva; que diferentes pessoas e ações possam viver junto, sem que um grupo ou uso espontâneo se sobreponha aos demais.
Resumidamente, a primeira regra é que as ações devem acontecer nos horários de abertura e nos espaços determinados pela equipe de ativação cultural (não é possível reservar uma área no galpão); 2) Não podem ter natureza ou fins comerciais, publicitários ou partidários; 3) Cada indivíduo/grupo deve respeitar os demais indivíduos/grupos que usam o espaço, aí incluídos trabalhadores permanentes do canteiro; 4) Não são acolhidas feiras, exposições ou apresentações diversas como parte dos usos espontâneos. São priorizados processos e ensaios, não resultados, por se tratar de um canteiro de obras onde tudo – incluindo a própria noção de cultura – está em construção; 5) As regras coletivas podem ser revistas e repensadas pelo público junto à equipe de ativação cultural e novas regras podem ser criadas, a partir de inspirações, necessidades e problemas que surgirem dos próprios usos.
Foram muitos os usos espontâneos até aqui: ensaios de diversos grupos de circo, teatro, música e dança; uso da cozinha do canteiro para cozinhar e comer; uso de bancos para descansar e dormir; uso das mesas para estudar; piqueniques; comemorações de aniversário; encontros de mães e bebês, em que bebês brincam e as mães trocam experiências sobre a maternidade/se ajudam mutuamente; encontro de doulas; rodas de samba; partidas de futebol; skate; massagem; bordado; pintura; xilogravura; tarô; esgrima; assembleias de estudantes secundaristas em luta; e reuniões do MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Pessoas em situação de rua que há anos vivem nas ruas do entorno, além de participarem das atividades regulares do espaço e poderem ali transitar com seus cachorros, usam as pias dos banheiros para tomar banho – apontando a necessidade de um dia a Vila Itororó ter chuveiros públicos –, e já usaram o banheiro para namorar, levantando a necessidade de existirem motéis públicos na cidade. Esses usos por moradores de rua podem ser comuns em outros centros culturais de acesso gratuito, mas no canteiro da Vila Itororó ações cotidianas aparentemente banais ou mesmo criminalizadas, se levadas a sério, têm o potencial de alimentar e transformar o projeto (e consequentemente alargar a própria noção de cultura, de centro cultural).
Eu gostaria de destacar dois usos espontâneos, para descrever como se deram, em 2015 e 2016, as noções de formação de público e de habitar a cultura, que sempre caminharam juntas. Entre os primeiros usuários do espaço estava uma dupla de circo vizinha da Vila Itororó, a Trupe Baião de 2. Começaram a treinar semanalmente ou quase diariamente ali e, aos poucos, foram atraindo outros grupos de circo para ensaiar no galpão. Um dia a Trupe Baião de 2 apresentou um espetáculo no galpão. As regras de usos espontâneos não permitem espetáculos, mas era inevitável que apresentassem ali o trabalho que havia sido criado e cultivado ali. No dia das crianças de 2015, eles foram por nós convidados para dar uma oficina de circo para crianças, com remuneração, e, desde então, se tornaram os professores de circo oficiais do canteiro aberto. Quando foi formado o coletivo do bairro, que é um coletivo de caráter horizontal e inter-geracional (ou seja: formado por crianças, jovens, adultos e idosos), que se reunia quinzenalmente para debater a Vila Itororó e definir parte da verba da programação cultural do canteiro, com a minha mediação, esses artistas de circo também se tornaram membros do coletivo. Em 2016, organizaram uma quadrilha de perna de pau na festa junina da Vila e, mais recentemente, junto a todos os demais artistas de circo que passaram a ensaiar no galpão, formaram o Coletivo Circense do Bixiga, que já auto-organizou dois festivais no canteiro aberto. Para a nossa equipe, os usos pelo coletivo de circo apontavam a necessidade de uma das casas da Vila abrigar, no futuro, atividades do circo e, quem sabe, ser habitada e gerida por pessoas de circo. Conforme a pesquisa histórica sobre a Vila avançou, descobrimos que diversas famílias de circo moraram na Vila entre os anos 40 e 80. Uma dessas famílias inclusive vivia em um trailer, estacionado atrás do casarão.
[ assembleia de ex-moradores ]
O outro uso que quero destacar, e essa é uma das poucas imagens que escolhi mostrar aqui hoje, foi a assembleia auto-organizada por ex-moradores da Vila Itororó no galpão, em novembro de 2016. Nesta assembleia estiveram presentes aproximadamente 70 ex-moradores, para discutir o andamento do processo de reconhecimento de usucapião de suas casas.
Foram muitas as colaborações na Vila entre abril de 2015 e novembro de 2016 que envolveram ativamente os ex-moradores, como o mencionado coletivo do bairro e as festas juninas, cujos registros podem ser vistos no site do projeto, por quem se interessar. Mas esta foi a primeira vez que elas e eles auto-organizaram uma atividade totalmente sozinhos, sem a minha mediação. Foram quase dois anos de trabalho para que elas e eles agissem com autonomia.
[ próxima tela branca ]
Além de fomentar usos espontâneos, parte das minhas responsabilidades como formadora de público foi estimular a brincadeira livre no canteiro – atividades não dirigidas e, no caso das crianças, sem a mediação de adultos (que podiam ficar por perto, observando). Como vocês puderam ver no vídeo que mostrei, no galpão existem estruturas de madeira como escorregador, balanço e paredinha de escalada para crianças brincarem, mas há também muito espaço livre, cantinhos, bolas e tecidos. Não há ali um chão especial para se brincar, mas somente o entendimento do galpão – cujas portas ficam totalmente abertas – como uma extensão da rua. Se hoje já não são comuns brincadeiras de rua em São Paulo, no pátio da Vila Itororó essa cultura foi cultivada até 2011 (ano da retirada das famílias) e é importante que não se perca; que seja compreendida e preservada como patrimônio imaterial. A última ação de formação de público no canteiro aberto que escolho compartilhar com vocês é a Clínica Pública de Psicanálise, concebida junto aos psicanalistas Daniel Guimarães e Tales Ab’Sáber, sendo que este último já não faz mais parte do projeto, por diferenças metodológicas que emergiram da nossa prática, durante os seis primeiros meses de existência da Clínica.
A ideia da clínica é atender gratuitamente ex-moradores da Vila Itororó e outras vítimas de violência do mercado e do Estado, um pouco como uma política de reparação do que se deu ali. Mas aqui quero falar das minhas motivações para a criação da Clínica, desde a educação. Um psicanalista pode ter muito conhecimento em arte, em cinema, em matemática etc., mas só vai mobilizar esse conhecimento a partir do que o analisando traz. Em outras palavras, só vai falar a partir de uma escuta atenta da fala – ou do silêncio – do outro. Até que os dois, analista e analisando, constróem uma só fala.
[ crianças na sala da Clínica Pública ]
A imagem que escolhi aqui mostra uma resposta inesperada de crianças ex-moradoras da Vila brincando no espaço da Clínica. Se em psicanálise normalmente há um “setting – um arranjo – determinante”, na Clínica Pública da Vila Itororó, como diz meu companheiro Daniel, “quem faz o setting é o povo”. As crianças batizaram a Clínica de “o lugar da calma”.
[ próxima tela branca ]
Finalizo esta apresentação deixando claro que tudo que narrei aqui foi um trabalho muito coletivo, mas que considerei este prêmio uma ocasião importante para sistematizar um pensamento e uma prática pedagógicos e refletir sobre o meu papel nesse processo, como artista, intelectual e educadora. Especialmente neste momento, em que acabo de deixar o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto. É uma partida triste, mas ao mesmo tempo feliz. Se fui chamada ali para formar um público, considero esse público formado. Autoformado. A Vila Itororó poderá um dia se tornar o pior centro cultural; elitista, cafona, turístico. Mas ainda pode ser tudo o que fizemos dela no presente.
[ foto Nelson Kon ]
Até mesmo uma grande agrofloresta, como na foto feita por Nelson Kon em 2014. Agradeço a todas e todos pela oportunidade.
Ontem terminei meu doutorado e foi tudo muito intenso. Antes de poder pensar em respirar ou sentir alívio e elaborar um pouco sobre toda essa intensidade, me vi dentro de um novo julgamento público, muito mais cruel que o julgamento pela universidade. Sem escuta alguma, sem confiança e sem respeito pelos esforços coletivos meus e de outras pessoas.
Se desfazemos afetos e amizades com tanta facilidade, se perdemos respeito uns pelos outros, que transformação queremos para o mundo?
Viver e deixar viver, respeitar sempre os esforços das pessoas queridas e continuar fazendo luta cotidiana. Essa que leva tempo, nem sempre é visível, e encara as contradições da vida real.
A esquerda não precisa inventar mais inimigos; precisa cuidar mais dos amigos.
filme de Jean Rouch e Edgar Morin, 1960
Rouch: Então, Edgar, o que você pensa desta projeção?
Morin: Bem, penso que é interessante porque, todas as coisas consideradas, tudo o que foi dito, pode ser resumido em duas coisas: ou as personagens são reprimidas por não serem suficientemente reais, por exemplo, Jacques reprime Angélo por ser meio ator quando está com Landry, ou eles são reprimidos por serem muito reais, como quando Maxie, esposa de Jacques, reprime Marilou por se desnudar diante da câmera. O que significa isso? Isso significa que chegamos a um certo estágio onde investigamos uma verdade que não é a verdade das relações cotidianas… Fomos além disso. Tão logo as pessoas são um pouco mais sinceras do que são na vida real, os outros dizem, “você é um mau ator, você é um ator”, ou dizem ainda, “você é um exibicionista”.
Rouch – É…
Hoje abre a exposição Aparelhamento, da qual participo com esse cartaz escolhido da série “Pela democracia mesmo”, que será leiloado para colecionadores de arte no sábado. (A obra foi pensada mais para o leilão que para a exposição). (mais…)
Quando há separação entre palco e plateia eu gosto de me sentar o mais perto possível do palco, para me sentir mais dentro do acontecimento cênico. Ontem eu me sentei na última fileira do teatro da Funarte São Paulo ocupada e mesmo assim fui totalmente envolvida pelo show da Ava (e de tantos outros/outras que a acompanhavam; no cartaz não havia separação entre todos os nomes anunciados e no palco também não). Este registro em vídeo da primeira música não faz jus ao show, que eu escolhi viver e não filmar (ainda que, normalmente, essas duas coisas sejam indissociáveis para mim). É uma câmera pequenina e parada, lá de longe, (mais…)
[Socine, 2009 e Periódico Permanente, 2016]
Clique aqui para baixar/ler a versão PDF desta comunicação, publicada na revista Periódico Permanente nº 6, 2016 (Editores residentes deste número: Cayo Honorato e Diogo de Moraes. Design: Vitor Cesar)
Para começar, gostaria de agradecer a presença de vocês nesta sessão. O Projeto Mutirão, que eu vou apresentar agora, tem uma forma um pouco diferente. Ele não é um filme curta, média ou longa metragem, mas só existe em situações como esta, de conversa, aula, palestra. Assim, cada vez que algumas pessoas se dispõem a escutar e ver o Projeto Mutirão elas se tornam colaboradoras do trabalho, tornam possível a própria existência do trabalho. Eu vou me apoiar em algumas passagens escritas para não ultrapassar os 20 minutos, mas espero que vocês consigam me compreender.
Em um dos textos de apresentação da exposição A respeito de situações reais (São Paulo, Paço das Artes, 2003), o crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet comenta o recrudescimento da produção de documentários no Brasil. Para ele, o público relativamente numeroso de um filme como Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002), entre outros documentários brasileiros, criava um quadro favorável à abertura de um amplo debate sobre o documentário. Debate que ele próprio iniciou: “pode-se observar que, de par com o aumento da produção e uma relativa variedade de assuntos, existe uma certa pobreza de dramaturgia. Prevalecem métodos descritivos e o recurso à entrevista, em detrimento de outras estratégias, de outras formas de narração, investigação, observação e análise”[1]. Mais de quatro anos depois, em 2007, com o lançamento de Jogo de cena (Eduardo Coutinho) e de Santiago (João Moreira Salles), as palavras visionárias de Bernardet ganharam forma. O que ele próprio reconheceu, ao afirmar que os dois documentários são “a prova de que o ensaio filosófico é possível no cinema, não como falação ilustrada por imagens, mas pelo aproveitamento e aprofundamento dos recursos da linguagem cinematográfica”[2]. (mais…)
Eu pensava que era um problema da sala 2 do cinema da Augusta. Foi o segundo filme que vi lá que o povo ria sem parar sem razões aparentes. Mas agora estava lendo umas críticas – não posso ler uma linha antes de ver um filme, mas gosto de ler todas depois de ver -, e percebi que podem ser comuns as risadas durante “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert. (Ao menos aqui em São Paulo, porque na Europa parece que nossos colonizadores ficam horrorizados).
O começo do filme foi um pouco uma tortura para mim. Ver uma atriz tão conhecida nossa fazendo um sotaque que não é o dela e as pessoas rindo a cada gesto da empregada Val como se ela fosse uma estúpida, a própria Regina Casé buscando ser engraçada, me fez pensar em ir embora. Eu e o Dani acabamos rindo um pouco junto ao público, pensando na roubada em que nos metemos, e acho que essa cumplicidade nos segurou mais um tempo no cinema.
Então a Jéssica entrou em cena. (mais…)