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Frase instalada na entrada do Centro Cultural São Paulo
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Projeto da área Parque da 31ª Bienal, por Oren Sagiv

31a Bienal

Instalei a frase “TEM UMA CATRACA NO MEIO DO CAMINHO” em duas entradas da Área Parque: na entrada junto à marquise e na entrada usada pelos grupos de escolas do projeto Educativo. As outras duas entradas deixei sem nenhuma frase, com a intenção de preservar a ideia original dos curadores para a área (o desejo de uma acolhida irrestrita, justamente sem catracas). As frases não são anunciadas como obra de arte; uma ficha técnica com meu nome não aparece junto delas. A ideia foi desenhar as frases no que seria um limite entre uma informação institucional e uma intervenção artística. Foto: Leo Eloy/Fundação Bienal

31a Bienal

31a Bienal

Fotos: Leo Eloy/Fundação Bienal

Registro da intervenção de Graziela Kunsch, artista da 31a Bienal, durante a abertura para convidados. São Paulo 02/09/2014. © Leo Eloy / Fundação Bienal de São Paulo.

Para fazer esta foto pedimos para abrir a porta inteira; mas somente metade da porta estava aberta. Foto: Leo Eloy/Fundação Bienal

31a Bienal

Foto: Leo Eloy/Fundação Bienal

O primeiro deslocamento implicado neste texto é o da fala oral para a fala escrita. Experimentei transcrever a palestra que fiz no seminário, com o objetivo de apresentar a transcrição como o meu texto para a publicação, mas não gostei do resultado. Experimentei também realizar um texto inteiramente novo, que de algum modo dialogasse com a minha fala presencial ou mesmo que adensasse algumas questões que abordei ali, mas não consegui. Então pensei em elaborar algo muito simples, que, objetivamente, pudesse refletir a minha fala no Paço das Artes em 27 de setembro de 2014.

Naquele dia comecei descrevendo um projeto que estou realizando no Centro Cultural São Paulo (CCSP), chamado O público de fora, no contexto da terceira edição do Edital Mediação em Arte. Ao estudar materiais da Divisão de Ação Cultural e Educativa do CCSP, chamou a minha atenção o uso recorrente do termo “públicos”, no plural, para falar do público da instituição. Dada a grande diversidade das pessoas que frequentam o espaço o CCSP não teria um “público”, mas “públicos”. Também chamou a minha atenção a ênfase dada ao CCSP como um espaço “acessível”. Um dos textos diz que “O CCSP é conhecido como um dos espaços mais acessíveis da cidade e grande parte da sua programação e serviços são gratuitos à população. É um espaço aberto, bastante democrático, com frequentadores de diversas faixas etárias e condições socioeconômicas”[1].

Como ocorre em muitos de meus projetos, pensei em dar uma resposta crítica a essas certezas, em sugerir um pouco de complexidade. Escolhi endereçar meus esforços a um público que não tem fácil acesso ao CCSP e que não está incluído nem mesmo na noção de “públicos” no plural, por mim chamado de “o público de fora”.

A primeira ação do projeto foi instalar a frase “TEM UMA CATRACA NO MEIO DO CAMINHO” em dois acessos do CCSP; na entrada maior, diante do jardim interno, e na rampa de acesso de quem chega pela estação Vergueiro. Em uma entrada a frase foi instalada no chão, de modo que as pessoas passassem por cima dela ao entrar, e na outra a frase será instalada em uma faixa no alto, presa em dois postes de luz, de modo que as pessoas passem por baixo.

O CCSP está localizado entre duas estações de metrô (Vergueiro e Paraíso) e é servido por diversas linhas de ônibus. A entrada no espaço é gratuita, o uso das áreas comuns é livre e muitas atividades da programação são oferecidas sem cobrança de ingresso. A arquitetura do CCSP é pensada como uma continuidade ou um prolongamento da cidade/da rua/da calçada para dentro do espaço. Ocorre que, mesmo nesse lugar considerado tão aberto e acessível, tem uma catraca no meio do caminho. Podemos imaginar diferentes catracas – e catracas acabaram de ser instaladas na entrada da biblioteca do CCSP -, mas a minha primeira motivação foi/é pensar as catracas do transporte coletivo.

O que estou chamando de “público de fora” são as pessoas que não podem chegar ao CCSP porque não podem se deslocar pagando o transporte até esse espaço ou que vivem em áreas da cidade que são desprovidas de transporte. No Brasil há aproximadamente 37 milhões de pessoas que não podem pagar as tarifas do transporte coletivo. Muitas dessas pessoas estão também excluídas das escolas públicas, dos hospitais públicos, dos parques e centros culturais gratuitos porque não podem pagar os ônibus (ou trens, metrôs) até esses espaços. Diz a Canção para o Movimento Passe Livre, de Rodolfo Valente, composta em 2006:

a gente queria ir pro trabalho
mas hoje nem sei se vai dar
tem uma catraca bem no meio do caminho
e quem não paga não pode passar

a gente precisa cuidar da saúde
mas hoje vai ter que esperar
tem uma catraca bem no meio do caminho
e quem não paga não pode passar

a gente tem que ir e vir
o movimento não pode parar
se é público o transporte
com direito não se lucra
passe livre já!

a gente precisa ir pra escola
mas hoje vai ter que faltar
tem uma catraca bem no meio do caminho
e quem não paga não pode passar

a gente também não é feito de ferro
e também quer passear
mas eis que a catraca aparece de novo
e quem não paga não pode passar

a gente tem que ir e vir
o movimento não pode parar
se é público o transporte
com direito não se lucra
passe livre já![2]

O projeto ali consiste ainda em duas outras ações educativas, que envolvem as diferentes equipes de funcionários e funcionárias do CCSP (equipes da segurança, jardinagem, manutenção, ação educativa, curadoria, limpeza, administração, biblioteca etc.), mas na minha palestra e aqui neste texto escolhi descrever somente a primeira ação. (Antes de falar de um pouco de utopia no tema do deslocamento, considerei importante explicitar alguns entraves aos livres deslocamentos; tanto na vida urbana como no sistema da arte).

Simultaneamente à realização do projeto O público de fora eu estava a poucas semanas da abertura da 31ª Bienal. Participo da exposição com três projetos, no entanto nenhum acontece no espaço expositivo, por escolha minha e da educadora Lilian L’Abbate Kelian, que colabora comigo em dois deles. Desde o ano passado estou em diálogo intenso e permanente com os curadores e as curadoras da Bienal e, perto da data de abertura, propus transpor a mesma frase originalmente pensada para o CCSP para a chamada Área Parque da 31ª Bienal, por ter relação com uma das minhas três proposições ali, que irei descrever ao final deste texto.

Aos que não visitaram a exposição, o pavilhão da Bienal foi divido pela curadoria em três grandes áreas: 1. Área Parque; 2. Rampa; e 3. Colunas. A Área Parque se localiza no térreo do pavilhão e foi imaginada como o “lugar do social”; como um espaço de chegada, confraternização e acolhimento. Diferentemente de bienais anteriores, que tiveram catracas, detectores de metal e seguranças logo na entrada do prédio[3], a curadoria desta Bienal propôs deixar quatro grandes portas abertas, sem catracas, em dois lados do térreo, para serem usadas como entrada ou saída.

Assim como no projeto arquitetônico do CCSP a calçada continua para dentro do espaço, no projeto arquitetônico da 31ª Bienal a ideia é que o Parque do Ibirapuera e a marquise – uma das portas está exatamente em uma das pontas da marquise – sejam prolongados para dentro do pavilhão.

Novamente, temos aqui o projeto de um espaço aberto, gratuito e com uma arquitetura que busca estimular o livre trânsito entre o lado de dentro e o lado de fora. Mas, novamente, há pessoas excluídas dessa experiência porque não têm condições de pagar o transporte coletivo até lá (entre outras catracas, menos literais, que poderiam render outras reflexões, mas que não foram a minha principal motivação neste trabalho).

Além de propor as quatro portas abertas na entrada, a curadoria da 31ª Bienal lutou para que catracas não fossem de todo instaladas na exposição. Mas esta batalha foi perdida e dez catracas foram instaladas na parte baixa da primeira rampa interna do pavilhão, que dá acesso ao primeiro andar, de modo que o meu trabalho implica também uma crítica às catracas internas da exposição. A ideia é desnaturalizar essa experiência de passar pela catraca; é a gente ter consciência da existência da catraca, do significado de sua existência e, esperançosamente, desejar que ela não estivesse ali.

No dia de abertura para convidados a instituição deixou somente uma das quatro portas abertas e posicionou dois seguranças junto à frase no chão, para recolher os convites.

Diante das quatro portas – tanto da única porta aberta como das três portas fechadas – a instituição posicionou um obstáculo pintado de branco, que contém o logo da 31ª Bienal. Este obstáculo não estava previsto nos desenhos originais para a Área Parque nem no meu trabalho. Eu havia escolhido o local exato de instalação das frases tendo como referência 1) a largura da porta inteiramente aberta (a largura da frase coincide com a largura da porta inteiramente aberta, mas as portas nunca estão totalmente abertas); e 2) a distância que tornaria possível uma pessoa avistar a frase desde o lado de fora, quando estivesse caminhando em direção à porta (o obstáculo branco obstrui essa visão e a pessoa é obrigada a contorná-lo para conseguir entrar).

Atualmente três portas da Área Parque ficam semiabertas (abertas pela metade; duas folhas de vidro em vez de quatro folhas) e uma porta fica quase fechada (somente com uma folha de vidro aberta). Esta porta se tornou a saída dos grupos de visita agendada, que ali se organizam em filas, para somente uma pessoa por vez ultrapassar a porta. Originalmente esta porta deveria ter quatro folhas de vidro totalmente abertas, para qualquer pessoa ou grupo – aí incluídos os grupos de visita agendada – entrarem ou saírem.   

Ainda que essas ações da instituição limitem a continuidade imaginada entre o parque e a exposição, vez ou outra é possível ver jovens frequentadores da marquise se apropriando do pavilhão. Um dia pude testemunhar um grupo de dança ensaiando em um dos círculos de piso de borracha instalados no chão da Área Parque e frequentemente vejo pessoas caminhando por entre as obras de arte ali dispostas com suas mochilas, comendo um lanche, ou deitadas, batendo um papo, simplesmente não fazendo nada.

A experiência que se tem na Área Parque, de um espaço de uso, é muito diversa da experiência que se tem após a catraca. O arquiteto Oren Sagiv tinha interesse em que cada uma das três áreas representasse experiências diferentes para as pessoas que circulam pela exposição, mas a diferença que percebo é de outra ordem: a Área Parque é uma área de liberdade e as duas áreas após as catracas vêm se constituindo como áreas de comportamento regrado e de repressão. (Até mesmo a liberdade ali é regrada, limitada ao espaço de alguns projetos artísticos, como o karaokê que integra o espaço criado pelo Ruangrupa). Alguém pode dizer que a Área Parque é mais livre porque se configura como espaço de encontro, debates e atividades cênicas (saraus, música, dança…). Mas é importante deixar claro que há uma série de obras de arte na Área Parque, como Mujawara (Alessandro Petti, Sandi Hilal e grupo Contrafilé, 2014), Espaço para abortar (Mujeres Creando, 2014) e cartazes/faixas do coletivo Comboio e do movimento Moinho Vivo, da Favela do Moinho, entre outras. É uma área expositiva, que aponta como a exposição como um todo poderia funcionar.

Para exemplificar o que estou dizendo, no seminário eu li o relato que um amigo, Reinaldo Cardenuto, publicou em seu perfil público de Facebook:

“No último final de semana, tive uma experiência péssima na Bienal de Arte de São Paulo.

Após passar algumas horas no Parque do Ibirapuera com a minha filha, em atividades lúdicas que não incomodam ninguém, resolvi levá-la até a Bienal. De vez em quando, por acreditar que a formação de uma criança deva incluir o acesso à diversidade social e cultural, costumo levar a Nara em exposições de arte que acontecem na cidade de São Paulo. No entanto, o que as exposições prometem para o seu público – ser um espaço alternativo de sociabilidade – geralmente não serve para as crianças.

Em cinco momentos, CINCO!!!, a Nara, que tem apenas quatro anos, foi reprimida por seguranças da Bienal. Em duas ocasiões, sem que ela demonstrasse qualquer intenção de tocar as “maravilhosas” obras em exposição, seguranças foram incomodá-la com palavras de ordem. Em outro momento, diante de uns espelhos, uma mulher veio dizer que ela não poderia correr. Em outra ocasião, na mais kafkaniana delas, quando a Nara disparou a correr na rampa da Bienal, um sujeito vestido de bombeiro foi interrompê-la e me dar uma dura. Fiquei com raiva e ensinei a minha filha a correr em câmera lenta… Estávamos brincando, fazendo traquinagem, quando outro sujeito, agora um segurança, veio falar que não podíamos nos movimentar daquela forma. Eu, de saco cheio, retruquei: “não podemos correr nem em câmera lenta?”.

Passamos exatos 90 minutos na Bienal e levamos cinco duras, tivemos que engolir cinco “autoridades” e suas palavras de ordem. Não bastasse isso, ainda teríamos que encarar um olhar fulminante em outro momento, quando estávamos vendo uma videoarte. A Nara estava gostando do trabalho, pois a ela parecia que os performers estavam brincando de estátua, e empolgada decidiu compartilhar suas impressões comigo. Um senhor que estava ao nosso lado passou a nos olhar feio e a resmungar, pois gostaria que a Bienal fosse um templo silencioso construído exclusivamente para o seu olhar e a sua (in)sensibilidade. Saiu reclamando, possivelmente pensando que era um absurdo uma criança na exposição.

Em resumo, o passeio foi péssimo. A Bienal promete ser uma experiência de abertura da sensibilidade política e social, tem um “slogan” com os dizeres “Como falar sobre coisas que não existem”, mas está completamente despreparada para oferecer essa abertura às crianças. Pelo contrário: reprime continuamente os momentos de espontaneidade infantil. No discurso, todos querem que as crianças tenham uma vida mais ativa e criativa. Querem que elas saiam dos espaços de consumo, dos shoppings, e frequentem ambientes alternativos de sociabilidade. No entanto, esses supostos lugares de cultura as tratam da mesma forma repressora que os próprios shoppings. Relato um caso que se passou na Bienal, mas já tive o mesmo problema no Sesc e no Instituto Tomie Ohtake. Aos pais, resta lidar com esse autoritarismo. Ao invés de incorporá-lo, ensinar as crianças a subvertê-lo desde cedo…”

Para encerrar a minha palestra com um pouco de utopia, apresentei o meu projeto na 31ª Bienal que busca superar catracas e certos limites, tanto no transporte público como na arte. Esse trabalho consiste na proposição, para a prefeitura de São Paulo, de uma linha de ônibus circular, sem destino conhecido, que irá passar por ruas e avenidas da cidade e parar em pontos de ônibus regulares. A cada vez que esse ônibus parar em um ponto, todas as suas três portas se abrirão – a da frente, a do meio e a de trás -, e as pessoas poderão entrar ou sair por qualquer uma delas. Dentro desse ônibus não haverá uma catraca e não será cobrada uma passagem diretamente dos usuários e das usuárias. No local onde se escreve o destino do ônibus, lá no alto e na frente, estará escrito “TARIFA ZERO”.

O ônibus não irá passar pela Bienal, pois a minha intenção não é discutir o acesso à Bienal. A ideia é sugerir que o próprio deslocamento é lugar e estimular uma outra forma de as pessoas se movimentarem pelas cidades[4].

Para ilustrar a imagem desse ônibus Tarifa Zero eu reproduzi páginas do guia da 31ª Bienal. Todos os projetos artísticos presentes na exposição ocupam duas páginas do guia e são representados por aproximadamente duas imagens e um texto. Nas páginas dedicadas ao ônibus Tarifa Zero os espaços reservados para as imagens estão em branco. E o texto termina assim: “Não há como saber, no momento de redação deste guia, se a prefeitura concordou em realizar esta obra, ou se a artista precisou adaptá-la. Mas o ônibus TARIFA ZERO pode existir ao menos como um projeto – ou como um horizonte, um destino -, num esforço de imaginação coletiva radical”.

[1] Divisão de Ação Cultural e Educativa do Centro Cultural São Paulo (Org.). #Sou público: ações educativas para a convivência no espaço público. Centro Cultural São Paulo, 2013. p.15.
[2] Para ouvir: <http://tarifazero.org/2013/06/17/sao-paulo-cancao-para-o-movimento-passe-livre/>.
[3] Mesmo a exposição sendo gratuita, a instituição coloca catracas com a justificativa de precisar contar o público. Além das catracas, são instalados detectores de metal e seguranças são posicionados para revistar bolsas/pertences pessoais dos visitantes.
[4] Ver Daniel Guimarães Tertschitsch, “Deslocamento é lugar”. In: Graziela Kunsch e Paulo Miyada (Eds.). Urbânia 4 (São Paulo: Editora Pressa, 2010-). Disponível em: <http://urbania4.org/2011/02/14/deslocamento-e-lugar/>.