Eu possivelmente vi quase todos os shows Encarnado que aconteceram na cidade de São Paulo desde o pré-lançamento do disco, na Casa de Francisca, em 10 de outubro de 2013. Mas ontem foi diferente. Era a segunda vez que eu ia assistir ao show no espaço Serralheria e a primeira experiência lá não tinha sido muito boa; as pessoas conversaram demais, até mesmo num momento que poderia ter sido fortíssimo, quando a luz acabou, no meio da música Ciranda do aborto.

Logo no início, Juçara explicou que esse show pedia concentração. Que quem quisesse conversar poderia ir lá fora, respeitando quem estava ali para viver aquele momento. As pessoas, desta vez, atenderam ao pedido, com pequenas exceções mais para o final. Cada música foi aplaudida longamente, como há muito tempo eu não presenciava. A gente sabia que estava diante de algo precioso e queria demonstrar isso aos músicos.

Mas não foi bem isso que me motivou a escrever. Quando falei que ontem foi diferente, foi porque ontem eu estava diferente. Havia entendido que o show estava marcado para as 22h e cheguei ali nesse horário. Não entendi nada quando encontrei a casa ainda bem vazia, depois percebi que o show na verdade só começaria depois da meia-noite. Foram duas horas difíceis e por muito pouco não fui embora, e que bom que não fui embora.

Foram horas difíceis porque ontem eu estava triste. Muito triste. Um desejo que eu alimentava há pelo menos um ano se mostrou impossível. Não vem ao caso contar que desejo era esse, mas o fato é que, pela primeira vez, vi o Encarnado num momento de desilusão. E doeu. Senti a dor da interpretação da Juçara. Eu olhava o senhor ao meu lado que, durante o show inteiro, não tirava os olhos dela. Espantado. Nós dois estávamos bem pertinho do palco e acompanhamos cada um de seus movimentos. É impressionante como a Juçara atriz alterna diferentes estados de espírito passando por todos eles de verdade, encarnando mesmo. Nada ali é superficial.

Junto da intensidade dela, como não sentir o rasgo na rabeca feito por Thomas Rohrer no começo de Pena mais que perfeita? Não me lembro desse toque específico no disco, mas neste e no último show que vi, há apenas uma semana, na Casa de Francisca, a rabeca estava lá, “estreitamente lenta”, como diz a música, riscando, traçando e fervendo todas as lembranças doloridas da gente. A mulher na porta da Francisca também chorou, eu percebi[1].

A precisão de Rodrigo Campos na guitarra e no cavaquinho quase escondem a sua ternura. Um virtuoso que tem alma, como disse o Dani. Uma máquina que nunca erra a música e que, ao mesmo tempo, é puro afeto. Toca de cabeça baixa, fala baixo, canta baixo (em seus projetos solo e no Passo Torto), mas faz um barulho fundamental. São dele os versos de Velho amarelo que abrem o Encarnado e nos atravessam até o final: “Não diga que estamos morrendo, hoje não”.

Do Kiko eu poderia dizer muitas coisas, que não cabem aqui. Ao receber um prêmio de reconhecimento por Encarnado, há três semanas, a Juçara generosamente fez uma declaração pública ao Kiko, dizendo que esse trabalho é “fruto do amor infinito” que ela sente por ele, explicitando a intensa colaboração entre os dois e a importância dele para a existência desse projeto[2]. A sua “guitarra suja”, como ele gosta de dizer, parece ter influenciado todo o grupo, que surta lindamente ao final da sua composição Ciranda do aborto, que é sempre o momento mais desestabilizador do show. Não dá para descrever o que se passa ali, só estando presente para saber.

Outro momento sempre bonito é o samba João Carranca: o Thomas sai do palco, porque não toca essa música. Mas o Kiko, que também não toca a música, mas é seu autor, fica ali, parado, apenas sentindo a sua criação ganhar vida através da Juçara, do Rodrigo e também do público, que canta junto.

Eu queria poder passar por cada música, deixar claro que a morte que a gente encontra em Encarnado é também redenção e muita vida, em Canção para ninar Oxum ou nas músicas hilárias do Tom Zé (Não tenha ódio no verão), do Itamar Assumpção (E o Quico?) e do Siba (A velha da capa preta), mas a minha pretensão não era fazer uma crítica que desse conta desse show, até porque ele me excede. E a experiência de ver Encarnado muda a cada vez. Se existe a concentração (e a entrega) de que falou a Juçara no começo do show, quem estiver ali vai viver um acontecimento cênico, teatral, único.

Ontem, o momento mais pungente (e inédito, inesperado) do show para mim foi quando a Juçara e o convidado Thiago França, este com o saxofone, repetiram o que disseram Leminski e Itamar: “Ópios, edens, analgésicos / Não me toquem nessa dor / Ela é tudo o que me sobra / Sofrer vai ser a minha última obra”. Mesmo que a música seja ambígua, que faça a gente achar graça do prazer que alguns de nós, em especial artistas, temos pelo sofrimento, eu era o próprio homem elegante querendo correr para casa para escrever.

A minha tristeza ainda vai demorar muito tempo para passar. Mas ontem a Juçara e os músicos que a acompanham tornaram essa dor mais bonita.


Download do disco Encarnado


Notas

[1] No primeiro Encarnado, ainda em 2013, antes do lançamento do disco, em abril de 2014, essa foi uma das únicas músicas que o Thomas tocou com o grupo, salvo uma falha na minha memória. Que bom que depois ele foi incorporado em quase todo o disco/show. Em Xote da navegação e Odoya o Thomas de novo leva a gente longe, num encontro de rio com mar que ele cria com sua “batedeira” e instrumentos que não sou capaz de identificar.
[2] Juçara em seu perfil público de Facebook, no dia 24 de fevereiro de 2015: “Ganhei o Prêmio e a sensação é de quentura, acolhimento… Pelas pessoas que votaram. Pelo júri que escolheu Encarnado no meio de tantos discos de artistas incríveis. Pelos amigos parceiros Rodrigo Campos, Thomas Rohrer, Rubens Amatto da Casa de Francisca, Thiago França, Romulo Fróes, Alice Coutinho, Marcelo Cabral, Lincoln Antonio, Mazé Cintra, Alessandra Leão, Belma Ikeda, que festejaram tão amorosamente essa vitória e todos que continuam celebrando aqui comigo.
Mas quero dizer ao parceiro master de tantas lidas Kiko Dinucci, acima de tudo e mais uma vez, a imensa inspiração que ele é, nesse e todos os trabalhos que faço. Dizer o quanto Encarnado é fruto desse amor infinito que tenho por ele. Que sua força e genialidade e entrega e generosidade são o alimento maior do que há de beleza nesse disco.
É isso que tinha faltado dizer, ainda que já estivesse dito!”. O prêmio em questão é o Prêmio Governador do Estado, da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.

encarnado-14mar2015-serralheria

Repertório do show de 14/3/2015 na Serralheria
Velho amarelo (Rodrigo Campos)
Queimando a língua (Romulo Fróes e Alice Coutinho)
Pena mais que perfeita (Gui Amabis e Regis Damaceno)
Xote da navegação (Chico Buarque)
Odoya (Juçara Marçal)
Ciranda do aborto (Kiko Dinucci)
Canção para ninar Oxum (Douglas Germano)
Dor elegante (Paulo Leminski e Itamar Assumpção)
E o Quico? (Itamar Assumpção)
Damião (Douglas Germano e Everaldo Ferreira da Silva)
Não tenha ódio no verão (Tom Zé)
Comprimido (Paulinho da Viola)
João Carranca (Kiko Dinucci)
Presente de casamento (Thiago França e Romulo Fróes)
A velha da capa preta (Siba)
BIS – Opinião (Zé Ketti)

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Este texto de Graziela Kunsch foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – Uso Não Comercial – Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.

2 Responses to “A dor em Encarnado, de Juçara Marçal”

  1. Show, que vi no Audio Rebel, Botafogo, sensacional.
    Seu texto, perfeito. Amoroso. Um carinho.
    Da Juçara, nada é preciso dizer.
    E enquanto lia, Coincidência boa, rolava no meu som o Rodrigo Campos, com o nem tão novo São Mateus. Não vivo sem.

  2. que coisa linda de se ler! fui em alguns shows do Encarnado, mas ainda não na Serralheria (apenas na Francisca, Virada e Sescs). e sim, muitas palavras, gestos, sons dos instrumentos formam um bolo na garganta que muitas vezes quero gritar com ela.
    que os outros shows sejam tão de rasgar quanto este.

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