diagrama site-specific, Jorge Menna Barreto, 2007

Regina Johas: Fico muito feliz de termos esta conversa. É um privilégio poder dialogar com uma artista tão atenta e engajada. Você fez sua graduação em Artes Visuais na FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado, onde a conheci. Era por volta do ano 2000.  Lembro-me de uma situação em que você apresentou, na disciplina que eu administrava, um trabalho que tratava questões referentes a espaço e você inundou o andar todo com fumaça, dissolvendo assim, visualmente, as barreiras entre as salas de aula. Ali já estaria se anunciando o que viria ser, em sua trajetória artística, a ruptura de fronteiras entre arte e não-arte?

Graziela Kunsch: Também fico muito feliz com este reencontro. Você foi uma professora importante para mim. Sobre Fumaça (2000), te agradeço por recuperar esse trabalho, conhecido apenas de quem conviveu na FAAP naquela época.
Antes de responder, acho que vale eu descrever a ação: aluguei uma máquina de fumaça grande, dessas usadas em espetáculos de teatro, e a posicionei em algum canto do andar onde ficam as salas de aula do curso de Artes Visuais. São salas distribuídas ao longo de um corredor bem largo, com portas e paredes, mas sem teto individual, havendo um único teto comum, cujo pé direito é bem alto. Liguei a máquina, ela começou a produzir fumaça, e essa fumaça se expandiu por todo o espaço, até onde encontrava limites físicos, e permaneceu por um bom tempo no ar. Quem adentrava esse corredor encontrava um lugar todo tomado por fumaça e precisava caminhar em meio a essa neblina. Quem já estava em aula, aos poucos vivenciou a sala de aula ser tomada por fumaça.
Acho que esse trabalho pode sim ser pensado como um prenúncio da minha prática como artista. Talvez menos na questão das fronteiras entre arte e não-arte e mais na recusa de caber em categorias artísticas pré-existentes e fechadas. Porque coisas que faço que podem não ser percebidas como arte por algumas pessoas, para mim ainda são arte.
Para explicar o que estou dizendo, vou lembrar o que se passou naquela noite. Ainda em meio à nossa sala tomada por fumaça, você estava muito mexida pelo meu trabalho. Emocionada mesmo. E fez comentários bonitos e precisos, como sempre, no âmbito das práticas escultóricas/tridimensionais. Mas, depois de um tempo, você se incomodou ao saber que eu tinha ficado feliz que uma outra turma, ao lado da nossa, estava dançando no meio da fumaça. Estavam na aula de desenho de figura humana do Mourilo (professor Lázaro Eliseu Moura), que sempre colocava música durante suas aulas, que eram de observação de modelos vivos.
Você me disse que não era possível eu ser, ao mesmo tempo, conceitual (e aqui você trouxe como referência a obra de Joseph Kosuth) e lúdica, brincalhona (como eram algumas experiências de Roman Signer, artista suíço que você nos apresentou). Eu tentei te perguntar por que não, uma vez que, para mim, era possível sim. A forma como o trabalho aconteceu demonstrava isso. As pessoas dançarem estava fora do meu controle e eu gostei que essa dança pudesse ser compreendida como parte da obra. Não me interessava a pureza do meu gesto conceitual, que foi responder às questões relativas ao espaço provocadas pela disciplina. Essa foi a minha intenção original, é claro, e sem dúvida eu me sentia mais próxima de Kosuth que de Signer. Mas quando a gente coloca coisas no mundo essas coisas estão sujeitas a diferentes reações e usos. Há vinte anos eu não tinha a clareza que tenho hoje, mas, hoje, eu consigo dizer que a dança – ou a sala de aula transformada em festa – foi uma ação do público tornado propositor. Hélio Oiticica falava do espectador tornado participador de suas proposições; eu me interesso pelo público como sujeito propositor, com a capacidade de transformar uma proposição inicial minha.
Diante do que expus, pergunto como categorizar esse trabalho de fumaça. Foi pensado e apresentado como escultura, pelo contexto da disciplina. Mas, na prática, assim como a fumaça borrou as fronteiras entre as salas de aula, a forma como a obra foi usada pelo público me impede de encerrá-la em uma categoria da arte. É claro que o vocabulário da arte contemporânea é bastante amplo – podemos recorrer a palavras como evento, acontecimento, situação, ou mesmo uso, entre outras. Mas aí a gente perde a ideia de escultura, que para mim ainda é estruturante dessa proposição.
Se houve algum prenúncio da minha trajetória ali, foi na dimensão de não caber. Não caber nas coisas como elas são. Ou não atuar como esperam que eu atue.
Além disso, me interessa a arte inserida na vida cotidiana. O mundo da arte se relacionando com outros tantos mundos, e não encerrado em si mesmo. O título original da obra, que depois virou Fumaça, era A expansão. Citando o bilhete que o coletivo 3NÓS3 deixou em galerias de arte de São Paulo em 1979, na ação X-Galeria, “o que está dentro fica, o que está fora se expande”.


RJ: Em seu projeto  “O público de fora” (2014) feito para o  Edital Mediação em Arte, do Centro Cultural São Paulo, você propõe entre outras ações “a instalação da frase TEM UMA CATRACA NO MEIO DO CAMINHO em dois acessos do CCSP; na entrada maior, diante do jardim interno, e na rampa de acesso de quem chega pela estação Vergueiro. Em uma entrada a frase foi instalada no chão, de modo que as pessoas passassem por cima dela ao entrar, e na outra a frase será instalada em uma faixa no alto, presa em dois postes de luz, de modo que as pessoas passem por baixo” [1].
Essa ação aconteceu também como parte do projeto “Ônibus Tarifa Zero”, na 31ª Bienal de São Paulo, realizada no mesmo ano. Nos dois casos há a preocupação com aquele público que não tem acesso às instituições de arte por não terem condições de pagar o transporte coletivo até as mesmas.
Nas instâncias da arte, a questão sobre o campo de forças que define a instituição, quem são os seus agentes e qual corpo de regras que aí se manifesta passou a ser alvo do conjunto de práticas artísticas a que se deu o nome de crítica institucional. Apresentando desafios radicais ao sistema de museus e galerias, os artistas da crítica institucional questionam o confinamento cultural da arte e do artista via suas instituições, ainda que reconheçam suas relações simbióticas com as mesmas. Sua prática artística se relaciona com a crítica institucional? Ou com quais outras orientações ou afiliações você contextualiza sua produção no campo da arte contemporânea?

GK: Alguns projetos meus podem sim ser pensados como crítica institucional. Mas eu gostaria de complexificar um pouco, porque muita gente entende crítica institucional como um ataque à instituição e nem sempre é isso ou não apenas isso. É uma forma de pensar com especificidade, de reconhecer que os espaços (sejam da arte ou outros) não são neutros e carregam histórias. Significa escutar determinado contexto e responder a ele. Um ato de responsabilidade. Neste sentido, eu prefiro pensar na noção de site-specificity, que inclui a crítica institucional, como uma forma minha de trabalhar.
Em sua dissertação de mestrado, intitulada Lugares moles (2007), o meu amigo Jorge Menna Barreto buscava inicialmente traduzir o termo site-specific para uma palavra em português. Esse conceito é usado de maneira muito equivocada no Brasil e em diversos lugares, sendo erroneamente usado como um substantivo (“lugar específico”), em vez de um adjetivo que qualifica determinada obra (“obra site-specific“, ou “obra orientada por um lugar”, sendo que “lugar” tampouco é a palavra ideal, pois site pode ser lugar, contexto, situação). E digo obra orientada “por” um site e não “para” porque há uma diferença aí. Realizar uma ação orientada “por” um contexto explicita que há escuta desse contexto pelo artista antes de chegar a agir. Fazer uma obra “para” um contexto coloca a obra ou mesmo o artista como mais importantes nesse processo. Não por acaso, muitos artistas reproduzem obras idênticas em contextos diferentes, adequando apenas algumas medidas ou alguns ângulos, e chamam isso de obra site-specific, porque a obra de algum modo se ajusta a um canto, ou uma janela, ou o que for do espaço expositivo. Uma instalação no espaço expositivo pode sim ser site-specific, é claro (e eu mesma instalei a frase citada por você em três locais diferentes, alterando apenas medidas – além do Centro Cultural São Paulo e da Bienal, também no Palácio das Artes, em Belo Horizonte). Mas uma instalação, por mais preparada que seja para determinado espaço físico e não outro, pode também não ser site-specific. Da mesma maneira, uma série fotográfica pendurada na parede de um cubo branco pode ser site-specific. Não é a adequação de determinada obra ao seu lugar de realização que qualifica uma obra como site-specific, mas a sua resposta crítica a esse lugar; a sua inadequação.
Para explicar melhor isso, retomo o processo de pesquisa do Jorge: durante o seu mestrado, ele chegou a inventar a palavra “expessitude” como tradução de site-specific, a partir das ideias de exterioridade (tudo que é exterior à obra importa), situ/situar/situado/situação (o apego à determinada localização) e espesso (do dicionário: de consistência densa; encorpado, grosso). Expessitude seria, assim, o estado, a qualidade ou caráter do que é situado, denso e vinculado ao seu contexto de produção. Na contramão da expessitude estaria o achatamento crítico, a ausência de camadas.
Conforme sua pesquisa avançou, ele decidiu abandonar esse termo, que sequer aparece em seu texto final. Porque o que mais incomodava o Jorge era o fato de site-specific vir sendo usado como uma categoria da arte, ao lado de outras, como escultura, pintura etc. (e não, como já falado, como um adjetivo que qualifica uma escultura, pintura etc.). Ele achou melhor traduzir site-specific como um método. Uma forma de fazer e de pensar. E desenhou um diagrama para descrever esse método.
Nesse diagrama ele identifica e explica cinco momentos do método site-specific: escolha do site; escuta e mapeamento; identificação de um problema; construção da fala (expressão que ele usou para falar da realização material da obra); fissuras (termo que empregou para falar da documentação de todo o processo e da circulação dessa documentação).
A grande sacada do Jorge ao descrever o método está nesse terceiro item: identificação de um problema. Porque não se trata de qualquer escuta, mas de uma escuta crítica. Para explicar esse gesto de identificar um problema de maneira didática, eu poderia recorrer a obras realizadas no final dos anos 1960 ou nos anos 1970 nos Estados Unidos, quando nasce essa noção de site-specificity. Mas escolho contar sobre dois trabalhos do próprio Jorge. O primeiro, seu trabalho final de graduação, Enconfrontos (1997), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele visitou a galeria onde eram expostos os trabalhos finais de graduação e mapeou todo esse espaço, usando seu próprio corpo como medida. Ali ele notou, para dar apenas um exemplo, a altura da janela, inacessível para quem circulasse pelo ambiente. Jorge então desenvolveu esculturas de figuras humanas para habitar esse espaço, todas hiperatrofiadas. Uma delas era bem alta, de modo que conseguia acessar essa janela e olhar para fora desse espaço.
O outro exemplo que trago ele realizou em 2014, a partir de um convite da dupla Bik Van der Pol, que participava da 31ª Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera. Circulando pelo parque, Jorge reparou nos muitos carrinhos e quiosques de venda de alimentos ultraprocessados como salgadinhos, salgados, biscoitos e refrigerantes, que ele chamou de comida para anestesia, recuperando um termo usado por Cildo Meireles. Jorge depois mapeou, com a ajuda de um biólogo, diversas espécies de PANCs – plantas alimentícias não convencionais, pelos gramados do parque. Então colheu essas PANCs, fez com elas Sucos específicos e colocou esses sucos para serem vendidos no restaurante do Bienal, em meio a bebidas como Coca-cola e Suco del Valle. Contra a anestesia, consciência contextual.
Eu trouxe essa longa explanação sobre a forma de pensar e fazer site-specific porque você havia me perguntado onde me localizo na arte contemporânea. E não foi por acaso que escolhi falar do Jorge e não do Richard Serra ou do Hans Haacke, ou mesmo do Cildo ou do Artur Barrio, que, naquela mesma época, trabalharam com consciência contextual, ainda que as formas de nomear aqui no Brasil tenham sido outras (Barrio e Frederico Morais usaram o termo “situação”; Cildo usou “escuta do espaço”, “realidade”, “circuito/anestesia”, “inserção/consciência”). Escolhi falar do Jorge porque, além de sermos amigos e partilharmos alguns projetos em comum, a figura alta que olha através da janela que lhe era negada e os sucos produzidos no parque e vendidos no restaurante da Bienal não se limitam a denunciar os problemas identificados. São obras propositivas de um outro mundo possível.
Voltando para o meu trabalho, os dois exemplos que você traz – O público de fora e Ônibus Tarifa Zero – não podem ser reduzidos a uma crítica à instituição. Parto da crítica – ou da constatação de um problema – para fazer uma proposição. Uma proposição para a cidade, a criação de uma política pública[2].
No caso do projeto na Bienal, diante da recusa da prefeitura em colaborar na criação de uma linha circular Tarifa Zero, terminei meu trabalho com uma performance, que foi o deslocamento do dinheiro alocado ao meu projeto artístico para lutas sociais, no extremo sul de São Paulo e em Belo Horizonte. Esse deslocamento se deu com a realização de um workshop de trocas entre movimentos que lutam pela Tarifa Zero no último final de semana da Bienal e com a concordância de todas e todos convidados de doar seus cachês aos seus movimentos de origem. Na palestra que dei sobre o projeto em Belo Horizonte, em uma itinerância da exposição, o meu cachê também foi doado. Essa ação foi anunciada como uma performance e teve a sala lotada de integrantes do Tarifa Zero BH, que terminou vibrando com a doação. Ainda que fosse um valor modesto, 600 reais menos impostos, isso tornou possível a realização de uma Busona (nome que o movimento dá a uma linha circular popular de ônibus Tarifa Zero) durante um processo de luta contra o aumento. No caso da Luta do Transporte no Extremo Sul, em São Paulo, com os recursos que vieram da Bienal no final de 2014 mais outras iniciativas, como a realização de um bingo, o movimento realizou três linhas populares, experimentais e efêmeras de ônibus Tarifa Zero, em maio de 2015, em três bairros diferentes, tendo conquistado a implementação de uma das linhas exigidas pela prefeitura.

RJ: Andrea Fraser, que já pertence à segunda geração da crítica institucional, ao referir-se à instituição de arte afirma que “a instituição está dentro de nós e não podemos nos afastar de nós mesmos”, concluindo que “não se trata de ser contra a instituição: somos a instituição”[3]. Você vê sua atuação como artista alinhada a esta reflexão de Fraser?

GK: Sim e não. Sim, no sentido de que a minha formação em arte me faz compreender os modos de funcionamento da instituição de arte e essa compreensão gera algum grau de pertencimento a essa instituição. Sim também no sentido de achar que é necessário e possível darmos um bom uso às instituições. Acredito muito no trabalho institucional realizado pela equipe que integrei no projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, em São Paulo, entre 2015 e 2017 (Benjamin Seroussi como curador, Fabio Zuker como curador adjunto, eu como educadora responsável pela formação de público – que depois passaria a denominar como autoformação de público –, Helena Ramos como produtora, entre outros); como considero relevante o trabalho institucional realizado por Clarissa Diniz e Janaina Melo no MAR – Museu de Arte do Rio (a primeira como curadora e a segunda como coordenadora da Escola do Olhar), entre 2013 e 2018; como tenho esperança na recém-empossada direção artística do MAM-RJ, a dupla formada por Keyna Eleison e Pablo Lafuente, acompanhados de Gleyce Kelly Heitor como responsável pelo setor de Educação e Participação. Pode parecer problemático eu citar apenas exemplos no eixo Rio-São Paulo, mas não faço isso por acaso: quero dizer que mesmo onde as instituições são muito estruturadas é possível reinventá-las, subverter sua vocação original.
Tanto a Vila Itororó tornada centro cultural como o MAR nascem a partir de violências e despejos diversos e como elementos gentrificadores das regiões onde estão localizados. Mas se gentrificação significa a substituição de populações, ou o enobrecimento/a elitização de determinada área (gentrification, conceito inventado na língua inglesa, deriva de gentry, pequena nobreza), a manutenção de populações que algumas pessoas queriam ver longe nesses espaços evita ou adia, em alguma medida, a gentrificação. O projeto Vila Itororó Canteiro Aberto acolheu a narrativa dos ex-moradores da Vila (e não a narrativa de arquitetos e gestores que os expulsaram dali) como história oficial e teve um grupo de ex-moradores presentes como interlocutores e propositores de ações. O MAR envolveu moradores da zona portuária de diferentes maneiras, além de ter realizado uma exposição histórica na qual indígenas decidiram como (não) gostariam de estar no museu (Dja Guata Porã, 2017-2018), para citar apenas um exemplo.
Não me sinto alinhada à reflexão de Fraser no sentido de que me sinto mais perto de tudo aquilo que escapa (ou não cabe, como dito anteriormente, ou é excluído, invisibilizado, ridicularizado, ameaçado), do que daquilo que está dentro, assimilado, aceito, incluído, normatizado. As instituições têm seu modo de pensar (ver How institutions think, de Mary Douglas, 1986) e o nosso papel nelas pode ser de crítica, desconstrução e/ou reinvenção desse modo de pensar. Nós não precisamos nos identificar com uma instituição estagnada, vestir cegamente a sua camisa. Somos sujeitos que podem colocar coisas em movimento.


RJ: O Projeto Mutirão, desenvolvido inicialmente durante o seu mestrado, é uma prática documentária e ação contínua que focaliza lutas políticas, não almejando um fim, nem originar um produto. É composto de uma série de vídeos em plano único – chamados por você de “excertos” – que capturam movimentos sociais, especialmente movimentos de moradia e o Movimento Passe Livre, mutirões de construção de casas, mutirões de limpeza, cozinhas comunitárias e também pequenas atitudes políticas do dia-a-dia como entrar no ônibus pela porta traseira. Esses registros têm início já em 2003, quando você começa a documentar uma série de lutas políticas.
O Projeto Mutirão gera um arquivo de vídeos de ações coletivas de transformação do espaço urbano e rural, arquivo esse que você leva para públicos diversos como museu de arte, escola para crianças, assentamento rural, ocupação de sem-teto, festival de cinema, universidade, aldeia indígena, etc. A cada vez que o Projeto Mutirão é apresentado, os excertos são escolhidos de acordo com o contexto, e as conversas aí são registradas e excertos das conversas são incorporados ao arquivo e exibidos em conversas futuras.
Segundo uma fala sua, o “Projeto Mutirão se contextualiza em práticas de arte contemporânea que eu chamo de práticas dialógicas. Resumidamente, trata-se de projetos artísticos onde se pode identificar uma forte inclinação educativa. Não uma educação disciplinar, mas uma educação baseada no diálogo, na troca de experiências, no compartilhamento de estudos, no aprendizado mútuo, enfim”[4].
Essas “práticas dialógicas” podem ser vistas como dispositivos de ampliação de subjetividades?

GK: Se a gente estivesse conversando pessoalmente, eu tentaria entender melhor o que você está chamando de “ampliação de subjetividades”. Como se trata de uma entrevista escrita, com as perguntas inicialmente formuladas por você, porque esta foi a forma possível para este nosso encontro acontecer, uma vez que eu me encontro quase inteiramente dedicada ao exercício da maternidade, vou arriscar duas respostas.
A primeira, seria pensar se o Projeto Mutirão tem o potencial de ampliar a nossa visão de mundo. Acho que sim. Quando vemos e debatemos ações de transformação espacial-social, que ao menos colocam no horizonte coisas como Tarifa Zero, ciclovias, reforma de prédios abandonados em moradias dignas, agroflorestas etc., estamos criando um novo imaginário.
Se essas coisas todas ainda são raras ou mesmo inexistentes até hoje, imagine em 2004/2005, quando comecei a realizar sessões do projeto. É diferente debater e imaginar Tarifa Zero no transporte público antes de 2013 e depois de 2013. Para dar mais um exemplo, tenho um excerto gravado por mim em 2008 que documenta ciclistas pintando ciclofaixas em uma via até então usada apenas por automóveis. Hoje essa rua tem uma ciclovia oficial, pintada por trabalhadores da prefeitura. É uma via que faz uma ligação bairro-terminal de ônibus/estação de metrô. Não fosse a imaginação política e – importante – a ação direta desses ciclistas, usando as próprias mãos, essa ciclovia jamais teria se tornado visível no horizonte e hoje não existiria como política pública. Ao colaborar no registro, na circulação e no debate dessas cenas, o Projeto Mutirão tem o potencial de inspirar outras pessoas a exercerem o direito à cidade, entendido não apenas como acesso ao que a cidade já oferece, mas, antes, como o direito – e a responsabilidade – de a gente refazer a cidade.
A segunda resposta que me ocorre dar a você, sobre ampliação de subjetividades, diz respeito ao sentido da forma dialógica do trabalho. Para existir diálogo é fundamental que as pessoas envolvidas se reconheçam como sujeitos. Em outras palavras, cada pessoa precisa ser reconhecida em sua subjetividade, ou no seu lugar de fala… Se quero dialogar com uma pessoa muito diferente de mim, preciso reconhecê-la como sujeito e escutá-la. Preciso escutar o que não entendo e até mesmo o que me incomoda e ela também precisa me reconhecer como sujeito e me escutar verdadeiramente, do contrário, será impossível dialogarmos. Não estou falando que temos que conversar com quem, por motivos diversos, não queremos conversar. Também não estou falando sobre aceitarmos o que nos fere ou nos anula. Há coisas que, para mim, são inaceitáveis. Preciso ter esses limites claros, inicialmente para mim e depois para o outro. Também não estou falando sobre chegarmos a um consenso, nem sobre nos tornarmos amigos. Estou falando sobre dialogar. Um diálogo pode sustentar o conflito.
Será a ampliação de subjetividades o exercício de se colocar no lugar do outro?
Ou a gente se permitir viver outras vidas? Ampliar a nossa própria existência, especialmente quando essa existência é negada? Eu diria que esse é sim um dos temas do Projeto Mutirão: a superação da nossa vida em sociedade atual, por outras formas de vida coletiva, que invente e acolha subjetividades diversas.

RJ:  No mesmo texto sobre o projeto você diz que se tornou uma personagem do trabalho e que “ora é a Graziela artista quem fala, ora é a ativista, ora a professora, a pesquisadora. Outro aspecto importante é que, apesar de a maioria dos excertos já coletados terem sido capturados por mim eu venho coletando excertos feitos por outras pessoas e espero que em algum momento eu me torne completamente dispensável, que o trabalho seja apropriado, que se torne uma prática coletiva.”[5] Nesse sentido, o Projeto Mutirão é um dispositivo de educação que busca um alargamento do público de arte? Ou seria uma forma de dissolução da arte no social? Uma desaparição da figura do artista?

GK: Algumas pessoas que participaram de sessões do Projeto Mutirão compreenderam tão bem a obra e se sentiram tão convocadas, inspiradas, que passaram a mediar  sessões do projeto por conta própria, fosse usando o arquivo construído por mim, fosse mobilizando outros registros, por exemplo feitos por elas mesmas em suas cidades. Essas pessoas gravaram as sessões mediadas por elas e me enviaram excertos dessas situações, para eu incorporar no arquivo. Quem tem contato com esse arquivo em uma exposição – e aproveito para contar que, após muitos anos de resistência, porque sempre escolhi enfatizar o aspecto presencial e cênico deste trabalho, irei pouco a pouco subir esse arquivo na página projetomutirao.naocaber.org – verá o que chamo de “excertos reflexivos” em meio aos excertos das ações de transformação espacial-social. Esses excertos reflexivos são momentos das conversas do Projeto Mutirão, em diferentes contextos. Aí fica muito evidente isso que digo de ter me tornado uma personagem do trabalho, pois em muitos desses excertos quem está na frente da câmera sou eu. Para explicar isso de outra forma, imagine um menu de DVD – que é a forma como parte desse arquivo circula atualmente – da seguinte forma: um fundo branco com vários pequenos retângulos organizados em uma grade. Cada um desses retângulos é um botão para dar play em um vídeo do projeto e tem um still (uma imagem) do vídeo em questão. Se olhamos o conjunto desse menu, é possível ver várias “Grazielinhas” em meio a imagens de outros indivíduos que participaram das conversas e em meio a imagens de lutas políticas. Conforme outra pessoa começa a assumir o papel que tenho no projeto, poderemos ver seu rosto com mais evidência também. Se muitas pessoas começarem a assumir esse papel, esses rostos deixarão de ficar tão evidentes, diluindo-se na coletividade.
Outra forma de responder é trazer uma sessão do Projeto Mutirão que realizei em Bogotá, Colômbia, no bairro Belén, em 2012. Eu estava na cidade em função de um encontro internacional de curadores, organizado pelo Instituto Goethe. Um casal de amigos colombianos disse que eu precisava conhecer esse bairro, bastante central, que havia dez anos vinha resistindo a um processo de gentrificação e “fazer algo lá”. Eu ficaria bem poucos dias na cidade, mas fui conhecer as pessoas e aprender sobre o contexto de Belén em um sábado e no domingo realizamos uma longa sessão do Projeto Mutirão. Comecei mostrando excertos da luta de resistência dos ex-moradores da Vila Itororó, pois se tratava de uma história muito parecida: alguém determina que certas construções são patrimônio de toda a cidade como forma de expulsar pessoas pobres de suas casas e substituí-las por pessoas mais abastadas, na forma de usuários de bares, restaurantes (projeto para as casas de Belén) ou centros culturais (projeto para a Vila Itororó). No início da sessão eu falei bastante, porque estavam todos bem interessados em entender o contexto da Vila, as especificidades das leis em São Paulo, as formas de luta… aos poucos, as pessoas presentes começaram a se inspirar e a imaginar novas ações. Aquela era a primeira vez que tinham conseguido reunir em uma mesma sala pessoas atuantes em diferentes frentes da resistência. A conversa entre o grupo estava mais que aquecida, já não estávamos vendo nenhum vídeo, e a principal liderança uma hora se lembrou da minha presença e me perguntou: “O que você está achando de tudo, Graziela?”. Eu estava achando tudo lindo; se eu tivesse saído da sala ninguém teria notado. O meu papel estava cumprido. Essas pessoas já estavam em movimento havia anos, mas o nosso encontro tornou possível que a luta ganhasse um novo fôlego; um pouco de ânimo e imaginação para continuar.

RJ: A quinta edição da Revista Urbânia foi  lançada na 31ª Bienal de São Paulo (2014) e tem como foco de discussão práticas de educação democrática. Nesse sentido, para além do público do mundo da arte, está endereçada aos indivíduos e colaboradores da edição, escolas indígenas, escolas de campo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), educadores e educadoras, grêmios estudantis, mulheres, pessoas racializadas, entre outros grupos específicos, e propõe a educação, empoderamento e aprendizado por meio da partilha comum, do fazer junto.
O artista alemão Joseph Beuys endereçava continuamente o aspecto educativo, tendo até mesmo criado a FIU – Universidade Livre Internacional (1974) – tida como um local vivo onde seria possível discutir os vários problemas reais da vida e na qual o potencial de criação de cada um poderia ser exercido na construção do que ele chamava de “escultura social”. Essas seriam referências para Graziela Kunsch? Quais referências artístico-conceituais e de outras práticas de educação democrática  você tem como influências em sua trajetória?

GK: Na época da faculdade me encantei por Beuys, mas hoje ele é apenas uma referência distante, pois nunca estudei de verdade sobre suas aulas, esse projeto de universidade, a noção de escultura social. Tenho sempre muita dificuldade em falar sobre referências, pois considero isso muito contextual, dependendo das pesquisas e experimentações em andamento. Hoje, que estou vivendo o mundo dos bebês, ou da chamada primeiríssima infância (0 a 3 anos), a minha principal referência é Emmi Pikler, médica húngara que desenvolveu uma pedagogia maravilhosa em um orfanato de Budapeste[6]. Quem sabe ainda falo um pouco dela, conforme a conversa avançar. É uma pena que eu ainda não conhecesse a abordagem Pikler quando editei o quinto número da Urbânia.
De todo modo, como referência permanente, é importante eu citar Paulo Freire. Descobri recentemente que a minha mãe, que tem 73 anos e segue trabalhando como professora, na USP – Universidade de São Paulo, leu Pedagogia do oprimido quando estava grávida de mim. Tenho comigo o exemplar usado e grifado por ela nessa época, e para mim isso é muito significativo, pois me reconheço como professora desde muito nova. Eu comecei a dar aulas aos 16 anos e nunca mais parei. (Hoje tenho 41). Como todo educador já tive e ainda tenho meus maus momentos, de falar mais que escutar. Aprender a ouvir e falar a partir do que o outro traz, no lugar de depositar conteúdos sobre esse outro, é um exercício constante.

RJ: Entre setembro de 2018 e março de 2019 você participou com o projeto Lugar de escuta da exposição “ARTE DEMOCRACIA UTOPIA – Quem não luta tá morto”, que teve curadoria de Moacir dos Anjos, no MAR – Museu de Arte do Rio.
O Museu de Arte do Rio propôs na ocasião a criação de um fórum – o #MARaberto – que foi “pensado como lugar de encontro, discussão e ocupação… (para) acionar vínculos entre arte, cultura, sociedade e política, gerando experimentos, reuniões, ensaios, oficinas, performances, saraus”. Naquele contexto foi também lançada uma “convocatória para que coletivos, movimentos sociais ou iniciativas de outros formatos ocup(assem) o fórum com as atividades que já realizam em outros lugares”[7]. O projeto Lugar de escuta aconteceu nesse contexto, junto com ações realizadas por grupos comunitários e associações da sociedade civil que trabalham com atuação política e social.
Como foi o desenrolar desse projeto? Você concorda com o pensamento de Simon Sheikh, quando ele afirma que “é nossa firme convicção de que o campo cultural é uma ferramenta útil para a criação de plataformas políticas e novas formações políticas, em vez de uma plataforma primária em si”?

GK: Esse projeto, realizado com Daniel Guimarães, meu companheiro e psicanalista, com quem fundei a Clínica Pública de Psicanálise em 2016, no canteiro aberto da Vila Itororó, na realidade não fez parte dessa programação #MARaberto. Essa programação inclusive não chegou a ser realizada como havia sido imaginada, por motivos que desconheço, caso alguém queira pesquisar a respeito. É importante dizer que o nosso projeto aconteceu dentro do espaço expositivo, por convite do curador Moacir dos Anjos, porque em muitos dos meus trabalhos eu proponho que o espaço expositivo não seja um espaço de contemplação, ou não apenas de contemplação, mas de uso.
A obra consistiu na instalação de uma roda de aproximadamente 20 cadeiras no espaço expositivo, junto à inscrição “Lugar de escuta – escuta do lugar”. A ficha técnica da obra dizia assim: “Para que diferentes lugares de fala sejam respeitados, é fundamental que exista escuta. É na escuta que a fala é validada, para a própria pessoa enunciadora. Uma comunidade pode se transformar ao, por meio de um processo de fala e de escuta, nomear e elaborar elementos até então silenciados sobre sua história, sua forma de existir e se relacionar. Nesse processo, que é ao mesmo tempo coletivo e individual, novos conteúdos sobre a própria comunidade podem emergir – ou ser imaginados”.
Esta roda de cadeiras permaneceu vazia em alguns momentos, aberta a diferentes interpretações, próxima a obras como as Almofadas pedagógicas, de Traplev, e à inscrição vazada na parede “O que não tem espaço está em todo lugar”, por Jota Mombaça.
Em outros momentos, a roda foi usada por mediadoras e mediadores da Escola do Olhar junto a grupos escolares, da maneira que fez sentido nas práticas de escuta e mediação já em andamento no museu, e pelo coletivo Escutadores, formado a partir do workshop “Experimentação de uma clínica pública no Rio de Janeiro”, mediado por mim e pelo Daniel, em setembro de 2018, com integrantes de projetos históricos e atuais de clínicas sociais e projetos que lidam com a memória (ou o não esquecimento) de remoções: Casa da Árvore, CEII – Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia, Clínica Pública de Psicanálise, Clínica Social de Psicanálise, Equipe Clínico Política RJ, Margens Clínicas, Museu das Remoções, NAPAVE – Núcleo de Apoio Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado, Psicanálise no Jacarezinho, Psicodrama Público, Rede de Saúde das Favelas e Rolé dos Favelados.
Além de compartilhar experiências e aprendizados, as e os participantes do workshop tiveram a responsabilidade de definir, democraticamente, o uso de uma pequena verba de produção de obra, para ações ao longo dos meses de duração da exposição. As ações poderiam acontecer no museu, no entorno do museu e/ou em um contexto específico do Rio de Janeiro, configurando, na prática, uma nova experiência de clínica pública na cidade, mesmo que temporária.
O grupo Escutadores, composto por psicanalistas, psicólogos, uma psiquiatra e artistas que são também educadoras, escolheu usar os recursos para remunerar suas horas de trabalho (ainda que com um valor bem inferior ao praticado em consultórios) e realizou sessões terapêuticas grupais no lugar de escuta todas as terças-feiras, dia de visitação gratuita ao museu, até o final de março de 2019, data de encerramento da exposição. As sessões eram divulgadas online e no próprio museu e havia gente que ia até o MAR apenas para participar e gente que estava visitando a exposição e se juntava ao grupo espontaneamente, na hora. Como a exposição foi marcada pelas últimas eleições presidenciais, as rodas acabaram se tornando lugar de refúgio para pessoas que estavam sentindo muito medo e ansiedade de tudo por vir com o novo governo.
Além da roda instalamos também duplas de cadeiras uma de frente para a outra junto a janelas do museu, com a pequena inscrição “Escuta mútua”. Essas cadeiras foram usadas espontaneamente por visitantes e também acolheram sessões terapêuticas, que chamamos de indivi-duais, novamente com integrantes dos Escutadores.
Após o encerramento da exposição, as sessões grupais seguiram acontecendo, para além do museu, em contextos específicos do Rio como Ocupação Chiquinha Gonzaga (atrás da Central do Brasil) e Lanchonete<>Lanchonete (Gamboa/Pequena África). Todas as cadeiras foram doadas para a Escola Por Vir, gerida pela artista Thelma Vilas Boas na Lanchonete<>Lanchonete.
As experiências das rodas de escuta dentro e fora do MAR, a Clínica Pública de Psicanálise e a Escola Por Vir, além dos já comentados Projeto Mutirão e Ônibus Tarifa Zero, podem ser exemplares para eu responder a segunda parte da sua questão: se o campo cultural pode ser uma ferramenta útil para a criação de novas formações políticas. Sim, penso como o Simon, com quem já pude trabalhar, em mais de uma ocasião. Para nós, a arte pode estar ancorada em seu contexto de produção e, ao mesmo tempo, apresentar horizontes possíveis e impossíveis de superação ou transformação desse mesmo contexto. Não na forma de representação estética (arte de temática política) mas, se fazendo, na prática, na vida cotidiana, na relação de artistas com pessoas de outros contextos (fazer arte politicamente). Mesmo que essa relação ganhe forma dentro de uma exposição ou de um centro cultural, ela pode ensaiar – e instituir –, no presente, outros imaginários políticos[8].
Grupos terapêuticos e uma Clínica Pública de Psicanálise instalados dentro de um museu com ao menos um dia de visitação gratuita e de um centro cultural da prefeitura, respectivamente, nos ensinam que a psicanálise pode ser inserida na cultura, no lugar de se limitar a uma elite, e mostra que o dinheiro não é estruturante nas relações analista-analisando. A experiência da Clínica Pública inspirou uma série de outras clínicas em espaços públicos em diferentes cidades brasileiras e um dia pode se tornar uma política pública. Mesmo todo atendimento sendo gratuito, a ideia não é que analistas não sejam remunerados pelo seu trabalho, mas que sejam remunerados de maneira indireta, por meio de impostos, e não por analisandos, no ato do uso. Não por acaso, é a mesma proposta da Tarifa Zero no transporte público: o sistema de transporte tem custos diversos, mas no lugar de parte significativa desses custos ser suprida por quem usa o transporte coletivo, na hora de passar pela catraca, os recursos viriam dos impostos. E os impostos precisam ser progressivos, de modo que ricos sejam mais taxados e contribuam mais com a vida coletiva. Ah, eu digo não por acaso, porque eu e Daniel partimos da nossa vivência passada junto ao Movimento Passe Livre para conceber a Clínica Pública. Uma clínica tarifa zero, inicialmente subsidiada por recursos de produção que eu tinha para desenvolver um projeto artístico, a convite de um curador. Aqui estou me atendo mais à questão do pagamento, mas vale dizer que a Clínica Pública ensaiou outras formações políticas de diferentes maneiras. Para dar apenas mais um exemplo, um dos projetos da Clínica em que me envolvi diretamente, o zine Escuta mútua, 2019, reuniu um pequeno mas diverso grupo de mulheres, de diferentes raças, classes sociais, idades, atuações, gêneros, sexualidades, corpos e nacionalidades para ensaiar, hoje, o que pode ser uma democratização da responsabilidade da escuta, ainda atribuída a especialistas das áreas “psi”. Nós fizemos encontros presenciais para pensar essa publicação juntas e, depois, cada uma redigiu depoimentos relatando vivências de opressão suas ou de mulheres próximas. Todas lemos os depoimentos umas das outras e chegamos à conclusão de que esse processo se configurou, na prática, como um exercício de cura. Pudemos nos sentir menos sozinhas nas nossas dores e mais conscientes de violências antes silenciadas. O zine segue em circulação e já recebi retornos diversos, como de mulheres que fizeram leituras coletivas do zine em voz alta e outras que passaram a se reunir periodicamente em espaços públicos para tão somente se escutar[9].
Sobre a Escola Por Vir, acho que é o melhor caso que posso usar para lhe responder, hoje, outubro de 2020, por ela estar em pleno funcionamento durante a pandemia, quando as respostas dos governos para a educação são sofríveis ou inexistentes. Testemunhar uma escola “por vir” sendo, se fazendo no presente, diariamente, tem sido das coisas mais lindas e animadoras acontecendo desde a arte e a educação no contexto atual. Cito o texto de um post recente no Instagram: “Seguimos inventando uma Escola Por Vir que responda também ao imponderável. As crianças da Escola Por Vir moram em ocupações superlotadas, em cômodos diminutos, sem rede de água e esgoto. Ter a Lanchonete<>Lanchonete aberta para recebê-las em grupos menores e com alegria, amor, respeito e saúde para partilhar todos nossos privilégios, inclusive para nos cuidar da Covid, distribuir o pouco de alimento que ainda recebemos, terem a chance de experimentarem a infância em paz, faz parte do que entendemos ser o Programa de Formação em Panificação, Letramento Literário e Saúde Mental que juntes escrevemos para este momento desafiador demais. Crianças são respeitadas na sua infância, mães e avós participam de um grupo de formação recebendo uma bolsa de 720 reais e todes recebem atendimento psi”[10].
Quando a pandemia chegou oficialmente ao Brasil, em março, me pareceu natural que as escolas fossem prontamente fechadas. Eu defendia que tudo que fosse possível fosse fechado, o que nunca aconteceu. Mas escolas foram fechadas. Hoje, sete meses depois, é com tristeza que vejo bares lotados e infâncias sacrificadas. O debate sobre abrir ou não escolas é complexo, especialmente se pensamos que professoras e professores e outros trabalhadores da comunidade escolar, além das crianças e dos jovens, estarão expostos. Mas quem pensa nas mães, que estão cumprindo jornadas contínuas de trabalho, tendo que sobrepor os cuidados com crianças e com a casa com outros tipos de trabalho, realizados na forma de “escritório doméstico”? Quem pensa nas mães sem rede de apoio e sem condições de pagar por cuidados que precisam trabalhar fora de casa, mesmo durante a quarentena? Quem pensa nas crianças, no direito à educação infantil?
Por que bares e restaurantes foram abertos e escolas permaneceram fechadas? Por que trabalhos que poderiam muito bem seguir sendo realizados remotamente voltaram a ser presenciais e escolas permaneceram fechadas? Por que praças, parques e playgrounds ficaram tanto tempo fechados, sendo que é muito mais difícil a contaminação ocorrer ao ar livre? A nossa sociedade escolheu ter como principal referência interesses de mercado, ignorando crianças, mães e pessoas idosas. Pessoinhas no início da vida, suas cuidadoras e pessoas no final da vida deveriam ter prioridade para se movimentar e respirar pela cidade. Se tudo que não é essencial fosse fechado e a educação fosse considerada essencial, os riscos de contaminação nas escolas e por meio delas seria diminuído. Porque seriam menos pessoas circulando no transporte público, menos pessoas se aglomerando em locais fechados e sem máscara… Se houvesse um pacto coletivo pelo cuidado da infância e dos mais vulneráveis, poderíamos até mesmo praticar momentos de silêncio individual e coletivo voluntários, o que é diferente de silêncio imposto, como uma das formas de evitar a contaminação.
Onde está a imaginação política, para reinventar as escolas a partir do efeito de realidade que poderia nos trazer a pandemia? Por que seguir fingindo normalidade, quando tudo que vivemos é novo para nós? Por que escolas foram reduzidas a atividades curriculares, na forma de aulas mediante telas? Como poderiam ser usadas as áreas livres das escolas, como pátios e quadras? Como poderia ser usada a rua, como poderiam ser usados praças e parques? Por que crianças e jovens foram excluídos dessa decisão?
Eu poderia ir longe nesse tema, mas vou me segurar, para tornar possível que, quem desejar, continue o exercício que comecei aqui.

RJ: Para finalizar, queria trazer aqui uma frase do Goethe e lhe propor pensar se há aí um diálogo com a sua trajetória: Kunst ist lange bildend, ehe sie schön ist (antes que bela, a arte é formadora). Na língua alemã a palavra “Bild” (um substantivo, cujo verbo correlato é “bilden”) possui duas vertentes principais de significado: quadro (imagem, pintura, retrato, fotografia) e formar (bilden), dar forma (gestalten) plasmar, construir.  Já “Bildende Kunst” significa Artes Plásticas.
Quando traduzimos do alemão para o português desaparece o sentido duplo do termo “bilden”, que está para imagem ou quadro assim como para construção ou formação. Nesse sentido é que a frase de Goethe se torna interessante: jogando com Bildende Kunst (Artes Plásticas), enfatiza o caráter formador da arte (“Kunst ist bildend”).
Em que medida essa frase dialoga com as suas proposições?

GK: Após usar pequenas brechas da maternidade para me dedicar à presente entrevista, sempre tarde da noite, com corpo e cabeça um pouco exaustos, senti vontade de desabafar agora sobre quão trabalhoso pode ser ter que contar a própria história, no lugar de simplesmente vivê-la. Estou muito contente com o que você, Regina e eu construímos juntas até aqui e não é a primeira vez que faço esse exercício reflexivo, indissociável do meu fazer, mas acho bom trazer esse estado de espírito ao texto para a gente lembrar que as coisas não são tão simples ou eficientes como podem parecer.
Eu iria gostar muito se uma pessoa que conhecesse profundamente a minha obra respondesse essa questão no meu lugar. Mas nem sei se essa pessoa existe ou se chegará a existir um dia. Por que estou dizendo isso? Porque vejo muita beleza no meu trabalho, especialmente em alguns vídeos, sempre formados por um único plano cada. Acho que a gente precisa de beleza.
Agora… a minha prática também aponta para uma insuficiência das imagens. É por isso que escolhi não colocar nenhuma imagem de trabalho ao longo desta entrevista, a não ser o diagrama-aula do Jorge, na esperança de que mais pessoas passem a agir com consciência contextual e atenção crítica.
Interesso-me pela beleza dos processos, mais que dos resultados. E me ocorre agora explicar “processo” de três maneiras diferentes: o processo que não gera resultado visível algum; o processo cujo resultado visível tem forma aberta e se transforma com o tempo; o processo de cultivar permanentemente a vida de uma proposição, assumindo-a como uma prática. Alguns trabalhos meus fundem as três maneiras ou duas delas.
Sobre a primeira maneira, a lembrança da minha atuação como professora de Teatro em uma aldeia de crianças órfãs, que viviam em casas com mães sociais. Aquelas crianças tinham vivido violências diversas em suas famílias de origem e muitas tinham passagens traumáticas pela Febem (hoje Fundação Casa). Eram crianças sem chão, sempre muito dispersas no espaço destinado ao nosso trabalho. A imagem que tenho era delas muito leves, correndo e gritando com os braços para cima, como se estivessem se movimentando mais pelo ar que pelo chão. Não era possível sequer dizer “vamos fazer uma roda?” e ter sucesso. Ao chegar para morar nessa aldeia social, essas crianças eram educadas a esquecer seu passado para recomeçar. Mas poder falar sobre a própria história, elaborar sobre a própria história é muito importante. Era final dos anos 1990 e eu não tinha nem vinte anos. Não tinha a pequena noção de psicanálise que tenho hoje. Intuitivamente, comecei a desenhar o rosto de cada uma delas. Uma criança por vez se sentava diante de mim, com uma mesa entre nós, enquanto as outras crianças brincavam, acompanhadas do ator e diretor Fernando Nitsch, na época professor-assistente. Durante cada desenho, eu escutava sobre a história daquela criança, como se fosse uma sessão terapêutica. Ao final, ela recebia o próprio retrato para guardar, se assim desejasse. Esse processo foi bastante longo e acompanhado de uma série de outras experiências de cuidado, que não caberiam nesta já longa resposta. O importante aqui, para resumir, é que me recusei a encenar uma peça de final de ano com o grupo, apesar de ter isso como obrigação, pela associação que me contratava. O grupo chegou a ter vivências mais explicitamente teatrais mediadas por mim e pelo Nando, graças a todo o trabalho de “chão” que fizemos antes. Mas montar um espetáculo só seria possível de maneira autoritária, forçando-os a fazer algo que não tinham vontade de fazer naquele momento. Foi um choque para a associação quando anunciei que havíamos decidido não fazer um espetáculo. Mas sustentei a posição, como um gesto de responsabilidade, e muito segura do processo educativo que a gente tinha compartilhado ao longo de um ano.
A segunda maneira, a minha obra-arquivo Excertos da Vila Itororó (desde 2006)[11]. Esse trabalho fica mais interessante conforme a gente percebe o contexto retratado e seus personagens se transformando. Nos registros de 2006, o urbanista e então vereador Nabil Bonduki aparece defendendo a preservação da Vila como local de moradia, contra a sua transformação em um centro cultural, em diferentes ocasiões. Já nos registros de 2015, ele figura como o Secretário da Cultura responsável por tocar o projeto de centro cultural, uma vez consumado o despejo das famílias. Jaqueline Santana, em 2006, dá banho em seu primogênito Kauã na casa onde morou por mais de vinte anos, na Vila, desde que nasceu. Em 2016, ela troca a fralda de seu quinto filho, Murilo, no escritório do canteiro de obras tornado centro cultural temporário. Já Kauã, se torna o primeiro analisando da Clínica Pública de Psicanálise (e segue até hoje com seu analista) e um dos autores/câmera de excertos do arquivo. Eu mesma tenho meu papel transformado nesse contexto e é meu desejo seguir me relacionando com ele e documentando suas mudanças, ainda que com intervalos de anos.
Como exemplo da terceira maneira de compreender processo, que estou chamando agora de cultivar a proposição, novamente o Projeto Mutirão. Alguns excertos que formam o arquivo do Projeto Mutirão podem ter autonomia, podem ser inseridos individualmente em mostras… inclusive cada um é intitulado individualmente. Mas eles ganham força uns em relação aos outros, uns articulados aos outros, sendo que eu não faço essa articulação sozinha. A junção simbólica de um plano cinematográfico a outro acontece durante encontros presenciais, em longas conversas, por vezes conflituosas, com desdobramentos diversos. Essa prática é profundamente pedagógica. Não no sentido de um ensinamento do público ou de uma alfabetização política, mas de um aprendizado mútuo, uma autoformação. É a gente se perceber como sujeitos dos processos – e de mudanças.

[1] KUNSCH, G. O público de fora. In: ARANTES, P. (org). Arte em deslocamento: trânsitos geopoéticos. São Paulo: Paço das Artes, 2015.

[2] Se desejar conhecer um pouco sobre esses trabalhos, por favor ver <https://naocaber.org/onibus-tarifa-zero-31a-bienal/> e <https://naocaber.org/o-publico-de-fora/>. Nota da entrevistada.

[3] FRASER, Andrea. Fraser. From the Critique of Institutions to an Institution of Critique. In: Alberro, A. & Stimson, B. (eds.). Institutional Critique: An Anthology of Artists’ Writings. Cambridge, MA: MIT Press, 2009.

[4] KUNSCH, G. Um filme não realizável, uma prática documentária. Comunicação realizada na XIII Socine, 2009, disponível em <https://naocaber.org/blog/2016/04/09/um-filme-nao-realizavel-uma-pratica-documentaria/#more-1246>.

[5] Idem.

[6] A abordagem Pikler se baseia no reconhecimento de bebês como sujeitos capazes, desde o nascimento; no cultivo do vínculo afetivo; na liberdade de movimento (por meio da brincadeira livre, não dirigida); e no desenvolvimento da autonomia. Para uma introdução à abordagem no português, recomendo a leitura de Vínculo, movimento e autonomia: educação até 3 anos, de Suzana Soares (São Paulo: Omnisciência, 2017) e As origens do brincar livre, de Eva Kálló e Györgyi Balog (São Paulo: Omnisciência, 2017). Em breve será publicada uma edição revisada da obra esgotada Educar os três primeiros anos: a experiência de Lóczy, organizado por Judith Falk. Aos poucos, irei publicar registros em vídeo da brincadeira livre/motricidade livre da minha filha na página <brincadeiralivre.naocaber.org>. Nota da entrevistada.

[7] <http://museudeartedorio.org.br/en/scheduling/if-you-dont-fight-you-die-art-democracy-utopia/>.

[8] Simon Sheikh é um estudioso dedicado de Cornelius Castoriadis, de quem recomendo fortemente “A instituição imaginária da sociedade” (editora Paz e Terra). Nota da entrevistada.

[9] Publicação impressa realizada pelo Sesc Santana, em duas edições, por ocasião do Festival De|generadas 5, 2019. Uma versão PDF pode ser baixada em: < https://naocaber.org/zine-escuta-mutua/>. Autoras dos depoimentos: Amanda Beraldo, Beatriz Moraes, Eduarda Casal de Rey Chaves, Graziela Kunsch, Júlia Oliveira, Manuela Ferreira, Maria Luiza Santana de Meneses, Maria Paula Botero e Veridiana Dirienzo. Preparação de texto/dramaturgia: Graziela Kunsch. Desenhos e design gráfico: Deborah Salles, em diálogo com Graziela Kunsch. Nota da entrevistada.

[10] Página de Instagram da Lanchonete<>Lanchonete, que acolhe a Escola Por Vir: @lanchonete.lanchonete. Nota da entrevistada.

[11] Ver vilaitororo.naocaber.org. Nota da entrevistada.

Entrevista publicada na revista Farol, da pós-graduação em artes visuais da UFES, junto a entrevistas realizadas por Regina com Jorge Menna Barreto e Fábio Tremonte. As três entrevistas foram agrupadas na forma de um único artigo, intitulado “Arte, formação e transformação na trajetória de três artistas brasileiros contemporâneos”: https://periodicos.ufes.br/farol/article/view/34032/22777?fbclid=IwAR3eA6c85d4IgyU4QMi7Tm_NoHr7uwH9ZEb3KW5ieZx2JO-kZ65PkHSB-Io
A entrevista foi realizada em 2020 e publicada no início de 2021