– contém spoilers –

Há um momento crucial no final de Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015), que, no entanto, é tão somente uma tela preta. Nesse momento, de ausência de imagem, o filme sai da tela e implica toda a sala de cinema nele. O filme nos convoca, espectadores, a tomar partido no julgamento de um homicídio que nunca aconteceu, a não ser como história ficcional. E deliberar sobre esse assassinato hipotético significa nos posicionarmos sobre uma série de outros assassinatos; estes reais e impunes[1].

Entre os muitos assassinatos reais abordados no filme dois ganham destaque. Primeiro, o sucedido com Soledad Barret Viedma, torturada até a morte em 1973, quando estava grávida de quatro meses, tendo sido denunciada por Cabo Anselmo, pai do bebê que ela esperava. Ele havia se envolvido com ela forjando ser alguém que não era, sendo na verdade um espião do Estado brasileiro infiltrado em uma organização de luta armada. Segundo, a morte de um rapaz, há poucos anos, cujo nome eu não guardei e que provavelmente não será facilmente localizado em buscas de internet, como é o caso de Soledad. Dele só retive uma imagem descrita por sua mãe, Eliana Nascimento, de que tinha uma pinta no pescoço. Foi através de uma fotografia e da constatação dessa pinta no pescoço que sua mãe pôde confirmar sua morte, sem poder, no entanto, enterrá-lo. Ele já havia sido enterrado, como indigente, no cemitério de Perus. Consta (da fala oral de policiais) que ele teria resistido a uma ordem de prisão e que por isso levou três tiros da polícia, sendo ao menos um desses tiros pelas costas.

Tomamos conhecimento desses e de outros casos em fragmentos de entrevistas individuais realizadas com os personagens do filme que, posteriormente, irão se encontrar em sessões coletivas de psicodrama[2]. Entre esses personagens estão, além de Eliana: Ñasaindy, filha de Soledad com José Maria Ferreira de Araujo, o Arariboia, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e assassinado em 1970 no DOI-Codi; José Roberto Michelazzo, preso e torturado no DOI-Codi; Marcelo Zelic, do grupo Tortura Nunca Mais; Sandra Domingues, defensora da pena de morte; Maria Dias, enfermeira de um hospital público de periferia que atende muitas vítimas de violência por arma de fogo; Adilson Pires de Souza, policial; e Marisa Greeb, psicodramatista responsável pela condução da experiência.

O primeiro encontro do grupo acontece no DOI-Codi e já na roda de apresentação ocorre uma tensão. Quando Eliana se apresenta, ela é interpelada por Sandra, que veste uma camiseta escrito “JUSTIÇA” em letras bem grandes. Sandra pergunta se o filho de Eliana estaria armado no momento de sua morte; insinuando que, se estivesse armado, poderia tirar a vida de muitos inocentes e que sua morte se justificaria. Esse tema se estende para o segundo encontro do grupo, nas ruínas do teatro TAIB[3], e cumpre no filme o papel de trazer para o presente os desaparecimentos/assassinatos cometidos por militares no período da ditadura e a anistia a eles concedida. A diferença é que hoje as principais vítimas da Polícia Militar e do Estado não são intelectuais ou militantes de esquerda (ainda que militantes de esquerda continuem sim sendo perseguidos, presos e torturados), mas jovens negros e pobres moradores das periferias e favelas.

Após esse aquecimento entre os personagens do psicodrama e a exploração desse tema o filme inicia um novo movimento, com outras pessoas e em outro espaço, que irá tratar do assassinato cometido por Orestes, personagem de ficção que dá nome à obra[4]. No salão nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, um juiz dá início a um julgamento simulado do crime de Orestes e informa que todos os presentes – a plateia está lotada – irão compor o júri do caso.

Orestes era filho de Maria do Socorro, que havia participado da luta armada contra a ditadura no Brasil. A primeira vez que Orestes viu seu pai, Gilson, foi aos seis anos de idade, no momento em que este matou sua mãe, por estrangulamento. Gilson fora amante de Maria do Socorro, na condição de espião infiltrado. Trinta e sete anos após ver seu pai matar a sua mãe, Orestes viu Gilson dando uma entrevista em um programa de televisão e foi em busca do pai, desarmado. No encontro, acabou estrangulando seu pai e, de acordo com o promotor do caso, bateu a cabeça do pai repetidas vezes contra o chão.

Ao fundo da plateia-júri vemos uma faixa contra a anistia concedida a torturadores, que funciona como elemento de realidade em meio à situação construída e nos informa que aquela encenação é, também, um ato político. A força retórica dos discursos tanto do promotor como do advogado de defesa impressiona: fica claro que eles não estão declamando um texto previamente escrito ou decorado, mas improvisado, um escutando e contra-argumentando o outro. Essa aposta na oralidade improvisada (que não pode ser controlada pelo diretor, a não ser parcialmente, no processo de montagem), tanto no julgamento simulado como nas sessões de psicodrama é, ao mesmo tempo, o aspecto mais documental e mais teatral do filme. Se há ali uma fusão entre ficção e documentário, ela se dá muito mais por essa qualidade cênica – que remete a filmes como Salve o cinema e Close-up[5] – do que pelo paralelo entre a história inventada de Orestes e a história real de Soledad.

De maneira surpreendente, aos poucos esses dois movimentos documentais e teatrais (o julgamento simulado e o psicodrama) irão se misturar. O réu confesso na ficção, Orestes, está ausente de seu julgamento, mas acabará encarnado por Ñasaindy e José Roberto Michelazzo, no último exercício de psicodrama.

A sequência começa com a enfermeira Maria narrando a história de Orestes para aqueles que haviam faltado no encontro anterior. Conforme a história de Orestes avança, Ñasaindy começa a chorar, ao perceber o paralelo óbvio entre Maria do Socorro e sua mãe, Soledad. De maneira bastante amorosa, a psicodramatista Marisa pergunta se Ñasaindy quer compartilhar o que está se passando com ela com o grupo. Aos poucos ela começa a revelar a sua história de vida, sofrendo por ter imaginado como seria se fosse filha de Cabo Anselmo, assim como Orestes é filho de Gilson. Marisa então pergunta se ela gostaria de encontrar Cabo Anselmo, para perguntar coisas diretamente a ele. E se por um pequeno instante imaginamos que o filme vá tentar promover um encontro real entre Ñasaindy e Cabo Anselmo, logo presenciamos um encontro também muito real, mas na forma de improvisação teatral.

Ñasaindy sobe as escadas do teatro TAIB e ali encontra Marcelo Zelic-Cabo Anselmo. Ele é grosso e impaciente com ela, mesmo após saber que ela é a filha de Soledad. Ela pergunta a ele se ele amou Soledad. Marcelo não dá espaço para qualquer romantismo ou complexidade em sua interpretação, insistindo somente na faceta de carrasco insensível de Cabo Anselmo, deixando Ñasaindy com cada vez mais ódio dele. Aos poucos ela consegue dizer, repetidas vezes, o que possivelmente passou mais de trinta anos entalado: “Você é um covarde”. Ñasaindy e Marcelo-Cabo Anselmo são surpreendidos com uma entrada brusca do participante José Roberto-Orestes em cena, que termina estrangulando Gilson-Cabo Anselmo. A improvisação cresce em dramaticidade com o suporte de uma música/trilha sonora, inserida na montagem. Nós já não vemos Anselmo no enquadramento, mas Ñasaindy assistindo à cena.

Será que vê-lo sendo estrangulado a ajuda a superar sua dor, seu trauma? Não sabemos. Em meio a essa dúvida – talvez antes, talvez depois, já não me recordo ao certo – acontece a fala final do advogado de defesa de Orestes. Eu aguardava ansiosamente a cena em que a multidão presente no salão iria decidir sobre a sua absolvição ou condenação (seria uma cena previamente ensaiada? as pessoas se posicionariam de improviso, durante a gravação, levantando seus braços? haveria debate, ou mesmo conflito?), até perceber que essa cena não iria existir. A multidão éramos todos nós e esse debate teria que se dar para além da exibição do filme no festival É tudo verdade.

Nós espectadoras e espectadores somos implicados no documentário; a história das vítimas da ditadura e da violência policial/estatal é também a nossa história. A prevalência da anistia a torturadores e a impunidade concedida a policiais militares e estadistas que diariamente matam jovens negros e pobres também nos diz respeito. O uso recorrente da tela preta em muitos cortes do filme, que inicialmente causa um pouco de desconforto e estranhamento, nesse momento se enche de sentido. A plateia-júri já não está lá porque a verdadeira plateia somos nós, na sala de cinema transformada em uma extensão do salão nobre da Faculdade de Direito e do teatro TAIB.

Há um momento no filme em que a enfermeira Maria afirma que não se pode compreender verdadeiramente uma dor estando fora dela. Mas por meio da arte isso talvez seja possível. A obra de Rodrigo Siqueira nos convoca a sentir essa dor.

 

Notas
[1] Em janeiro deste ano, 2015, policiais foram julgados e condenados pelo assassinato do filho do personagem Daniel Eustáquio de Oliveira, ocorrido em 2012, mas durante a realização do filme o caso permanecia impune. Para mais informações sobre o caso ver http://ponte.org/pms-presos-apos-pai-de-vitima-investigar-execucao-sao-julgados/
[2] No caso de Soledad, além da entrevista com sua filha o diretor usa o recurso de registrar buscas sobre o caso na internet, incluindo um trecho do programa Roda Viva no Youtube, que tem Cabo Anselmo como entrevistado.
[3] Teatro localizado no subterrâneo da Casa do Povo, no Bom Retiro, que foi um reduto de intensa atividade contra a ditadura militar.
[4] Inspirado na tragédia “Oréstia”, de Ésquilo, na qual Orestes é absolvido de ter matado sua mãe para vingar a morte do pai. A referência é descrita logo no primeiro letreiro do filme (posteriormente espero publicar o parágrafo de descrição aqui).
[5] Filmes de Mohsen Makhmalbaf (1995) e Abbas Kiarostami (1990), respectivamente. Há dois pequenos textos meus sobre esses filmes aqui no Não Caber: O chorar de verdade em Salve o cinema e O tribunal paralelo de Close-up.

Graziela Kunsch, 21 de abril de 2015
Filme visto na 20ª edição do Festival É tudo verdade

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Este texto de Graziela Kunsch foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – Uso Não Comercial – Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.

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