No sábado desci no metrô Sé perto de 15h. Eu sabia que às 15h teria início uma apresentação do Coletivo Cartográfico, que aproxima dança e performance, e que aconteceria na Praça da Sé. O trabalho se chamava “Instruções para o colapso”. Ao chegar na praça comecei a procurar pelas meninas do grupo. A primeira coisa que encontrei foi um homem deitado no chão, sem nada por baixo, no meio da praça. Aquilo já seria parte do espetáculo de dança? Não e sim, talvez. Andei mais um pouco e encontrei uma segunda pessoa caída no chão. Aos poucos, olhando em volta, comecei a perceber diversos corpos – alguns deitados, outros caídos – por toda a praça. Lá na frente, na escadaria da catedral, as três meninas começaram a descer os degraus rolando, corpo inteiro no chão, bem lentamente. A escadaria estava cheia e pessoas foram se aglomerando para tentar entender o que aquelas meninas estavam fazendo. Na pequena multidão que se formou havia pessoas como eu, que tinham ido até a praça às 15h, para ver um trabalho de dança, e outras que ficaram instigadas pela situação, mas que muito rapidamente perceberam que se tratava de alguma encenação. Apenas quem não identificou esse limite entre vida e atuação foram alguns moradores de rua, em especial uma moradora, que de longe parecia embriagada, e ameaçou uma das dançarinas fisicamente. Daquela distância não dava para saber o que ela estava dizendo, mas era ela quem tornava a apresentação mais contundente.

Após a descida da escada as três meninas corriam, paravam e caíam no chão. Corriam, paravam e caíam. Até que uma delas pegou um saco de farinha e, mais adiante, delimitou, com a farinha, um círculo no chão. Entrou no círculo e gritou “Aqui!”. Então as duas outras dançarinas e toda a pequena multidão fomos até esse círculo. (Todos que frequentam a Praça da Sé sabem que existe uma cultura de as pessoas se reunirem em rodas ali, seja para ouvir alguém tocando um instrumento, seja para um culto evangélico improvisado). Dentro desse círculo aconteceram novos exercícios coreográficos de resistência e queda e uma segunda dançarina pegou o saco de farinha e, mais adiante, desenhou um novo círculo no chão. “Aqui!” – e todos nós fomos andando até o segundo círculo. Novos exercícios coreográficos, a terceira dançarina, o terceiro círculo, e nós já atingíamos o meio da praça. Foi bonito ver os três círculos no chão, sobrepondo a cartografia das meninas sobre a cartografia da praça. Nesse círculo aconteceram novas quedas e, aos poucos, elas começaram a nos guiar para a passagem sobre a entrada da estação de metrô. Ali os movimentos das meninas se tornaram espasmos – eram movimentos firmes de contração e relaxamento dos músculos, cada uma a seu modo. Se até então eu percebia a coreografia como uma performance, na qual as meninas se misturavam aos ocupantes da praça, experimentavam os limites dos seus próprios corpos e deixavam nossos (dos espectadores) corpos ativados para acompanhá-las, para tentar entender o que se passava ali, aos poucos fui me sentindo na posição passiva de contemplação.

Ao mesmo tempo, conforme a coreografia e o percurso pela lateral da praça avançava, éramos atravessados por odores de urina e fezes que vinham de alguns canteiros de terra e, uma por vez, começaram a surgir uma série de moradias improvisadas. Eu me dei conta que nunca havia ido nessa parte da praça e fiquei surpresa com todo um mundo que habita ali. Não são moradores de rua isolados, mas uma comunidade de moradores de rua. Gostei de ver roupas penduradas em uma escultura “pública” de Caciporé Torres e de ver uma porção de sapatos lavados secando ao sol. Fui sendo tomada pela vida daquelas pessoas enquanto uma das dançarinas fazia um solo. Não fosse pelo espetáculo, talvez eu nunca tivesse conhecido esse pedaço da cidade de São Paulo. Depois outra dançarina fez um solo e depois aconteceu – isso já era bem previsível – um terceiro solo. Gostaria de destacar o início do terceiro solo, no qual Carolina Nóbrega só dançava ajoelhada, rente ao chão, como se não tivesse pernas. Fiquei pensando como deve ter sido o laboratório dela para montar essa coreografia e achei a sequência forte, tornando-se menos interessante apenas no final, quando, novamente, de algo mais próximo da performance – o limite do próprio corpo da Carolina, um estado, uma presença – ela ficou de pé e fez movimentos mais racionais (ainda que tudo deva ter sido coreografado e ensaiado, havia qualidades diferentes quando ela estava se movimentando sem poder recorrer aos pés e quando estava de pé).

Ao final, recebemos um papel com uma lista de “instruções para o colapso”, enquanto Carolina lia todas essas instruções ao microfone. Termino bruscamente esta breve descrição crítica destacando a quarta instrução, que para mim reflete os momentos de maior potência desse trabalho: “Observe a paisagem explodindo ao longe. Perceba que é parte dela. Sinta seu corpo implodir por dentro. Quando não conseguir mais distinguir os ruídos, é porque estará bem encaminhado”.

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