comentário crítico sobre o filme Close up [Abbas Kiarostami, 1990]

Hossein Sabzian é um aficcionado de cinema e pobre que se apresenta como o cineasta Mohsen Makhmalbaf para a senhora de uma família burguesa, os Ahankhah. Por causa do interesse que um de seus filhos nutre por arte, a senhora Ahankhah acaba o convidando para a sua casa, onde ele segue fazendo se passar por Makhmalbaf e ensaia rodar um filme. Uma vez desmascarado, Sabzian é preso e seu caso vira notícia de jornal. Nesta notícia, o acusado dá um depoimento que deixa Abbas Kiarostami muito impressionado: “Daqui por diante sou um pedaço de carne de um animal sem cabeça e podem fazer comigo o que quiserem”. O cineasta teve a sensação de que Sabzian falava com ele, de que ele era o público ao qual se dirigia, e que tinha de fazer algo com ele[1]. Assim levou sua câmera e equipe até a prisão onde se encontrava Sabzian e ali começou um dos filmes mais singulares da história do cinema.

Neste filme o personagem Sabzian é interpretado pelo próprio Sabzian, a família Ahankhah, pelos próprios Ahankhah, e até mesmo Mohsen Makhmalbaf aparece para o desfecho. No catálogo da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2004, que abrigou uma retrospectiva dos filmes de Kiarostami, lê-se “semi-documentário” para descrever o gênero a que pertence este filme. Se é “semi-documentário” é também “semi-ficção”? Se é “semi-documentário” não é inteiramente “documentário”?

As cenas do tribunal, do julgamento de Sabzian, levaram mais de nove horas de gravação. O processo, no entanto, demorou aproximadamente uma hora. Kiarostami diz que aí nasceu uma das maiores mentiras que já contou na vida, visto que grande parte do processo foi reconstruída sem a presença do juiz[2]. Para o crítico Youssef Ishaghpour, esta cena constitui o pivô do filme:

  • Kiarostami não se limitou a meramente registrar um processo. Com a permissão do juiz, ele conduziu em pleno tribunal uma pesquisa paralela, que acaba por se inscrever no processo. A instituição viu-se forçada a tolerá-lo, considerando Kiarostami um especialista em cinema, um advogado não-oficial e capaz de conduzir um contra-interrogatório do réu. Além do mais, se a família Ahankhah foi lubridiada e a lei, transgredida, também o cinema se pode declarar lesado, pois é em nome do cinema, como cineasta, que Sabzian desempenhou seu papel. Assim sendo, o cinema tem o direito, e mesmo a obrigação, de estar ali, como partido moral, e de interrogar. Ainda assim, o cinema de Kiarostami não quer julgar, mas escutar, ajudar “as realidades simples e escondidas” a aparecerem[3].

 

Uma das perguntas de Kiarostami a Sabzian é: “Qual a sua verdade?” Ao que ele responde: “Estou interessado em cinema, em arte”. Assumir a arte como verdade abre a possibilidade de se perceber (e de se mostrar) a realidade das mais diferentes (e mesmo ficcionais, mentirosas) maneiras…

[1] Abbas Kiarostami, “Duas ou três coisas que sei de mim”, em Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify; Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 2004. p. 229
[2] Idem. p. 231
[3] Youssef Ishagpour. “O real, cara e coroa”, em Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify; Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 2004. p. 108

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