No texto de apresentação da exposição “A respeito de situações reais” (São Paulo, Paço das Artes, 2003), o crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet comenta o recrudescimento da produção de documentários no Brasil. Para ele, o público relativamente numeroso de um filme como Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002), entre outros documentários brasileiros, criava um quadro favorável à abertura de um amplo debate sobre o documentário. Debate que ele próprio iniciou: “pode-se observar que, de par com o aumento da produção e uma relativa variedade de assuntos, existe uma certa pobreza de dramaturgia. Prevalecem métodos descritivos e o recurso à entrevista, em detrimento de outras estratégias, de outras formas de narração, investigação, observação e análise”[1]. Mais de quatro anos depois, com o lançamento de Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007) e de Santiago (João Moreira Salles, 2007), as palavras visionárias de Bernardet parecem ganhar forma. O que ele próprio reconhece, ao afirmar que os dois documentários são “a prova de que o ensaio filosófico é possível no cinema, não como falação ilustrada por imagens, mas pelo aproveitamento e aprofundamento dos recursos da linguagem cinematográfica”[2].

O recurso utilizado por Jogo de cena é, nada mais, a verdade proporcionada pelo cinema. Uma verdade não muito verdadeira, a começar pelo seus nomes técnicos: “impressão de realidade” ou “efeito do real”. E justamente por tudo parecer tão real, Jogo de cena emociona; a “dimensão trágica” percebida por Bernardet[3] reside naquilo que o filme tem de ficcional. Em determinado momento, ficamos sem saber quais mulheres são “verdadeiras”, quais mulheres são atrizes, e todas são, ao mesmo tempo, atrizes e verdadeiras. E a cabeça vai longe, misturando ao filme de Coutinho o diálogo final de Crônica de um verão (Jean Rouch e Edgar Morin, 1960), o “chorar de verdade” de Salve o cinema (Mohsen Makhmalbaf, 1995) e o tribunal paralelo de Close up (Abbas Kiarostami, 1990).

Em Santiago, o recurso mais explorado é a narração em primeira pessoa. É a voz encorpada de um cineasta maduro sobre a sua voz de menino prepotente que articula no presente os documentos registrados há mais de treze anos. E o que é narrado não é exatamente a história de Santiago, personagem que dá nome à obra. Mas, fundamentalmente, o que o “narrador do narrador”[4] nos conta é a relação de um cineasta e seu material bruto, de um patrão e seu empregado. “Um jeito de falar de si, por meio de um objeto – ora direta, ora indiretamente manipulado” (Pablo Ortellado, 2007)[5].

Notas de rodapé
[1] Jean-Claude Bernardet, Práticas documentárias e situações reais. Catálogo da exposição “A respeito de situações reais”. São Paulo: EXO e Paço das Artes, 2003. Grifos meus.
[2] http://jcbernardet.blog.uol.com.br/ em 14/01/2008
[3] Idem. É interessante notar os diferentes adjetivos da crítica para este momento de Jogo de cena: José Geraldo Couto caracterizou o momento como “perturbador” (Folha de S. Paulo 08/11/2007); Marcelo Coelho falou em “truque de mágica”, em “pérfidos milagres” (Folha de S. Paulo 05/12/2007).
[4] Apesar de o narrador do filme ser o próprio João Moreira Salles, a voz deste narrador é de Fernando Moreira Salles e, na versão em inglês, de Fernando Alves Pinto. Tomamos conhecimento desta informação nos créditos finais do filme.
[5] Blog desobediente.org, desativado. O blog atual do autor é http://www.gpopai.org/ortellado/ mas até o momento não contém o texto referenciado.

Este trecho abre o segundo capítulo da minha dissertação de mestrado, intitulado “Prática documentária”. Projeto Mutirão, ECA-USP, 2008.

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Este texto de Graziela Kunsch foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – Uso Não Comercial – Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.

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