– contém spoilers –

Há um momento crucial no final de Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015), que, no entanto, é tão somente uma tela preta. Nesse momento, de ausência de imagem, o filme sai da tela e implica toda a sala de cinema nele. O filme nos convoca, espectadores, a tomar partido no julgamento de um homicídio que nunca aconteceu, a não ser como história ficcional. E deliberar sobre esse assassinato hipotético significa nos posicionarmos sobre uma série de outros assassinatos; estes reais e impunes[1]. (mais…)

Eu possivelmente vi quase todos os shows Encarnado que aconteceram na cidade de São Paulo desde o pré-lançamento do disco, na Casa de Francisca, em 10 de outubro de 2013. Mas ontem foi diferente. Era a segunda vez que eu ia assistir ao show no espaço Serralheria e a primeira experiência lá não tinha sido muito boa; as pessoas conversaram demais, até mesmo num momento que poderia ter sido fortíssimo, quando a luz acabou, no meio da música Ciranda do aborto.

Logo no início, Juçara explicou que esse show pedia concentração. Que quem quisesse conversar poderia ir lá fora, respeitando quem estava ali para viver aquele momento. As pessoas, desta vez, atenderam ao pedido, com pequenas exceções mais para o final. Cada música foi aplaudida longamente, como há muito tempo eu não presenciava. A gente sabia que estava diante de algo precioso e queria demonstrar isso aos músicos.

Mas não foi bem isso que me motivou a escrever. Quando falei que ontem foi diferente, foi porque ontem eu estava diferente. (mais…)

A contribuição que eu havia pensado originalmente para o projeto/livro “Vocabulário Político para Processos Estéticos”, organizado por Cristina Ribas, era contar, desde a minha experiência, como vi a expressão “Tarifa Zero” no transporte coletivo aparecer, ser debatida (inclusive negada) e se transformar ao longo dos últimos nove anos. Eu queria contar da emoção que eu e pessoas de luta próximas como Lúcio Gregori (criador do projeto Tarifa Zero nos anos 1990) e Daniel Guimarães (criador do website TarifaZero.org em 2009) sentimos hoje toda vez que uma multidão de rua grita “Tarifa Zero”, porque foi um longo processo até essa expressão ter sido assumida por todos os coletivos do Movimento Passe Livre e, pouco a pouco – com muito trabalho de base em escolas e comunidades, além dos materiais impressos e das manifestações de rua -, ser apropriada por tantas pessoas. Não cheguei a redigir esse texto e, no processo de organização desta publicação, acabei escrevendo e publicando um outro texto relacionado ao tema, objetivando contribuir diretamente em um processo político, mais que em processos estéticos. A Cris perguntou se eu não teria vontade de publicar este texto também no Vocabulário e, inicialmente, achei que não fazia muito sentido. Ao voltar ao texto, lembrei que seu objetivo principal era trazer para o debate público a Tarifa Zero, no momento em que a grande imprensa escolheu ofuscá-la, colaborando no processo de criminalização das lutas por mudanças sociais e espaciais. E o que é este Vocabulário, senão tornar visíveis certos termos e contextualizá-los?

Não sei se o texto que segue irá colaborar em processos estéticos – espero que sim -, mas estou muito contente de contribuir na publicação desde os movimentos políticos. (mais…)

Eu tentei ficar no hall do Cinesesc após a exibição do filme A vizinhança do tigre (Affonso Uchoa, 2013). Mas não deu. Eu precisava sair daquele espaço correndo. Era dia de abertura de mostra e nós, espectadores, éramos servidos a todo momento. Champagne, castanhas e queijo brie com uvas verdes, ou algo parecido com isso. O rap Eu queria mudar, trilha dos créditos finais do filme, ainda estava na minha cabeça.

Eu não conseguia falar e não tinha vontade de falar. No banheiro cruzei pessoas conhecidas e elas perguntaram se eu estava passando mal, pois eu não respondia seus comentários sobre o filme. Acho que eu estava mesmo passando mal. Só lembro de ter ficado assim após ver O prisioneiro da grade de ferro (2003), de Paulo Sacramento, que por acaso viu o filme de ontem a poucos metros de mim. Outros filmes já mexeram comigo e me deixaram sem vontade de conversar, mas em A vizinhança do tigre e O prisioneiro da grade de ferro meu emudecimento foi de outra ordem. Eu me envolvi por seus personagens, torci – e torço – por eles, mas não tenho nenhuma resposta individual a dar que possa tirá-los de suas condições.

Um filme se passa em um bairro periférico de Contagem, Minas Gerais – curiosamente chamado “Nacional” (poderia ser qualquer outra quebrada no Brasil) – e o outro dentro do complexo penitenciário Carandiru, meses antes da sua demolição. Nos dois casos não parece haver saída. Mesmo que os meninos de A vizinhança do tigre estejam soltos e que a sua condição seja muito melhor do que seria em uma cadeia, não parece haver esperança de mudança. (mais…)

Eu pensava em estruturar uma fala para apresentar meus trabalhos da melhor forma possível para vocês mas, ao invés de o MAC me encontrar, eu acabei optando por tentar encontrar o MAC.

Em uma conversa preparatória da atividade de hoje, a Luiza Proença, do grupo que está organizando esses encontros junto ao Tadeu Chiarelli, me disse que uma pergunta que ela tem feito a quase todos os artistas que vêm aqui é: “O que você espera do MAC?”

Coincidentemente, antes de ouvir essa pergunta da Luiza, eu vinha pensando em doar todos os meus trabalhos de 1999 até hoje, incluindo algumas correspondências pessoais, a um museu público. Todos os meus trabalhos estão muito mal guardados, em minha casa, muitas coisas já se perderam… e eu só conseguia pensar no MAC. Mesmo sem saber nada sobre o estado atual do MAC, o meu desejo era, de alguma forma, estar perto da história do MAC. O MAC do Parque do Ibirapuera. Dialogar com aqueles artistas que, nos anos 1970, fizeram coisas incríveis junto ao museu.

Eu venho tentando fazer esse diálogo já há algum tempo. Em 2007, em função de uma pesquisa para o curador alemão Heinz Schutz, e seguindo orientações de Mario Ramiro e Maria Olimpia Vassão, (mais…)

com Ana Letícia Fialho. Entrevista originalmente publicada na revista Trópico, seção Em obras.

O crítico de arte e curador dinamarquês Simon Sheikh (1965) esteve em São Paulo durante um mês, numa viagem de pesquisa de um grupo da The Royal Danish Academy of Fine Arts. Nesse período, ele pode visitar várias vezes a 29ª Bienal de São Paulo e examiná-la com muita atenção. Sheikh também desenvolve atualmente uma pesquisa sobre exposições de arte e imaginários políticos na Universidade de Lund, é orientador do projeto “Former West” e curador da exposição “Vectors of the possible” (na BAK, em Utrecht). Além disso, ele é editor da série de livros “OE Critical Readers”, na qual se destaca a obra “In the Place of the Public Sphere?” (2005). A fim de conhecer as reflexões de Sheikh sobre a Bienal, Trópico o entrevistou, estruturando as questões a partir dos tópicos arte e política, criticalidade, contexto e historicização, mediação e da noção de exposições de arte como “espaços de esperança”, tese defendida por ele. Segundo o curador, para que as bienais sejam lugares de esperança, e não somente do capital, elas precisam “estar mais ancoradas em seus contextos e comunidades e menos nas estruturas de poder e interesses econômicos do mundo internacional das artes”. (mais…)

De manhã:
a) Fala inicial sobre a situação atual do assentamento Ireno Alves dos Santos e sobre o projeto do Núcleo Urbano na antiga vila barrageira por um dos coordenadores do movimento;
b) Apresentação do resultado das discussões sobre Produção, Gestão e Vida coletiva, realizadas no primeiro Seminário (sistematizadas no relatório já apresentado), com relato dos assentados que haviam participado daqueles debates;
c) Exibição de slides pela USINA do seu trabalho em São Paulo de produção de habitação junto aos movimentos de moradia e em seguida, slides do seminário realizado na vila barrageira e imagens de como ela era anteriormente. Neste ponto eram convocadas pessoas a avaliar o seminário e a história de transformação da vila;
d) Os participantes dos seminários (de 60 a 150) eram divididos em três rodas de debate, das quais participavam uma liderança local e um assessor técnico da USINA. As perguntas que orientavam o debate eram:
– histórico e nome da comunidade
– o que já avançou?
– o que falta avançar? (surgindo daí propostas)

Trecho de relatório dos seminários das comunidades do Assentamento Ireno Alves dos Santos – MST

Em junho de 2008, no contexto da minha pesquisa de mestrado (Projeto Mutirão, ECA-USP), perguntei ao arquiteto Pedro Arantes, membro da USINA, se ele poderia me apresentar algum projeto desta assessoria que só houvesse existido como projeto. Isto é, que não tivesse sido realizado, ou talvez não em sua totalidade. Pedro me concedeu um depoimento de uma hora e trinta minutos, transcrito a seguir, sobre uma experiência desenvolvida junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) entre os anos 1998 e 2002, no interior do Paraná. Para minha surpresa, não se tratava de um projeto de edificações, mas de um projeto de cidade. Esta história inspirou o projeto editorial da revista Urbânia 4. (mais…)

No texto de apresentação da exposição “A respeito de situações reais” (São Paulo, Paço das Artes, 2003), o crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet comenta o recrudescimento da produção de documentários no Brasil. Para ele, o público relativamente numeroso de um filme como Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002), entre outros documentários brasileiros, criava um quadro favorável à abertura de um amplo debate sobre o documentário. Debate que ele próprio iniciou: “pode-se observar que, de par com o aumento da produção e uma relativa variedade de assuntos, existe uma certa pobreza de dramaturgia. Prevalecem métodos descritivos e o recurso à entrevista, em detrimento de outras estratégias, de outras formas de narração, investigação, observação e análise”[1]. Mais de quatro anos depois, com o lançamento de Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007) e de Santiago (João Moreira Salles, 2007), as palavras visionárias de Bernardet parecem ganhar forma. O que ele próprio reconhece, ao afirmar que os dois documentários são “a prova de que o ensaio filosófico é possível no cinema, não como falação ilustrada por imagens, mas pelo aproveitamento e aprofundamento dos recursos da linguagem cinematográfica”[2].

O recurso utilizado por Jogo de cena é, nada mais, a verdade proporcionada pelo cinema. Uma verdade não muito verdadeira, a começar pelo seus nomes técnicos: “impressão de realidade” ou “efeito do real”. (mais…)

Eles vão continuar construindo cercas e nós vamos continuar derrubando-as.

Como se daria, na prática, o sonho de um espaço vital comum e de uma comunidade sem desigualdade?[1] Em uma aula da disciplina “Tecnologia da construção da paisagem urbana e direitos do cidadão”, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, o professor Jorge Hajime Oseki perguntou aos alunos como seria o espaço do socialismo, considerando um socialismo diferente daquele vivido na União Soviética[2]. Anotei algumas respostas: “um espaço descentralizado”, “um espaço que explore o conceito de vizinhança”, “prédios abertos ao meio, para deixar que os rios passem entre eles”.

O que o professor Oseki tentava estimular era a nossa imaginação utópica, fundamental no processo de urbanização. Da mesma forma que um governante pode imaginar uma calçada nova para a avenida Paulista, nós podemos re-imaginar esta avenida inteira. (mais…)

Relato crítico originalmente publicado no Fórum Permanente.

Antes de começar este relato, acho pertinente apresentar o projeto de exposição que tem curadoria de Heinz Schütz, não referenciado em sua palestra. Este projeto se chama Performing the city: Actionist Art in the Urban Space 1960s and 1970s e está planejado para acontecer a partir de outubro de 2008, em Munique. Após Munique, a exposição deve percorrer as cidades Tóquio, Seul, Moscou, Viena, Lituânia, Praga, Berlim, Dusseldorf, Londres, Paris, São Paulo, Nova Iorque, Toronto e Cidade do México.

Performing the city tem três preocupações centrais: 1. Pensar a cidade como um espaço de ação; 2. Organizar uma documentação histórica; e 3. Contribuir com o debate atual sobre arte pública.

As “ações urbanas”[1] dos anos 1960 e 1970 escolhidas por Schütz serão apresentadas em quinze grandes atlas – cada atlas referente a uma das cidades que vão acolher a exposição – com mapas, fotos e pequenos textos. Desta forma, Schütz pretende “evitar que fotos das performances estejam penduradas em paredes como obras de arte raras. Cada ação estará situada na cidade onde aconteceu; a fronteira entre arte e não arte será flutuante”. Mas além dos atlas a exposição ocupará espaços institucionais, com instalações de áudio e vídeo, uma programação de filmes e uma série de palestras. (mais…)

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