texto publicado em: https://issuu.com/sescsantana/docs/sala-zero-graziela-kunsch

Quando usamos o termo “outro” para designar uma pessoa ou o termo “outras” para falar de certas práticas, estamos determinando que existe um referencial padrão que seria a regra, ou o normal, e “outro/outras” seria o que escapa dessa regra, dessa normalidade. No caso da quinta Sala Zero de Mediação, intitulada Outras mediações, a intenção original do grupo de educadores-curadores era abordar experiências de mediação que se dão fora das exposições de arte, sendo que em todos os demais encontros as reflexões diziam respeito ao trabalho de mediadoras no contexto das exposições.

Ocorre que, no pré-encontro com as convidadas JANAÚ e Juliana dos Santos – uma semana antes de cada Sala Zero acontecia um encontro preparatório entre equipe, convidadas e relatora -, tive a preocupação de que as outras mediações convocadas no título pudessem ser compreendidas pelo público como “mediações (por) indígenas” e “mediações (por) negras”, uma vez que JANAÚ deu bastante ênfase ao seu momento atual e recente, de passar a se compreender e se assumir como mulher indígena urbana, e Juliana acentuou sua preocupação em contar uma outra história da arte e educação, marcadamente antirracista. Essa interpretação do título não seria justa, pois significaria que o grupo de educadores-curadores estaria se identificando com um lugar de fala branco e hegemônico e exotizando outras formas de se fazer mediação, o que não procede.

Na prática, na noite do encontro, pudemos descobrir e aprender, juntas, a que de fato se referiam as tais outras mediações. Antes de explicitá-las, trago um pouco das falas das duas convidadas.

JANAÚ se apresentou como bicho encantado, na forma de um poema, e contou sobre o seu processo de retomada ancestral, como descendente do povo marajoara Mapuá, considerado extinto, mas que permanece vivo em rostos, práticas e comidas. Ela e seus companheiros do movimento de retomada questionam se, uma vez que costumes ainda estão vivos, esses povos podem de fato ser considerados extintos. Esse processo coletivo – e reforço aqui o fato de ser uma luta coletiva, não individual – tem representado para ela um caminho de cura, uma forma de lidar com as feridas coloniais. Após essa apresentação, ela contou sobre experiências de mediação em que esteve envolvida, das quais irei destacar três, que chamaram a minha atenção por um aspecto comum a todas elas, que foi envolver os próprios mediadores como público da mediação: LIM – Laboratório de Investigação Meditativa; Ambulatório; e Clínica de Educadoris[1].

O LIM teve como objetivo convocar o corpo das pessoas durante visitas à 33ª Bienal de São Paulo, experimentando estimular os diferentes sentidos (para além do olhar) e mediar obras da exposição sem recorrer à fala. Essas visitas envolveram grupos escolares e espontâneos, mas também mediadores daquela bienal, que puderam, imagino, desconstruir e transformar a sua própria prática após a vivência. O Ambulatório, praticado na mesma exposição, consistiu na aplicação de Reiki (técnica de terapia integrativa que usa o toque das mãos) em mediadores, como forma de acolher o medo e a apreensão que estavam sentindo com o momento presente e tudo por vir, em meio às eleições de 2018.

A Clínica de Educadoris, realizada um sábado por mês no JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube, no período de dois anos, interrompida na pandemia, nasceu inspirada em sessões de supervisão clínica. JANAÚ trouxe como referência a Psicologia, mas explico aqui o que é uma supervisão no âmbito da prática psicanalítica: um encontro entre colegas para falar a respeito de um trabalho clínico. A princípio se trata da análise de um analista com outro analista mais experiente; um outro que escuta o analista que está lá na relação com o paciente/analisando, e dessa escuta surgem questões do próprio analista-supervisionando em relação ao processo que ele relata. Apesar da função diferente de uma análise regular, o método de trabalho é o mesmo: falar para que produções do inconsciente possam emergir e novos sentidos se apresentem. A supervisão é um dos pilares da formação psicanalítica, uma vez que não se trata de um estudo teórico, mas da vivência com o próprio objeto de interesse da psicanálise – o psiquismo de um sujeito dividido em relação a outro psiquismo[2].

JANAÚ estava interessada na ideia de cuidado coletivo e teve a ajuda de pessoas com capacidade organizativa no Jardim Miriam para envolver educadores de CCAs e escolas da região nos encontros (tanto de educação infantil como do ensino médio). Como exemplo do que se passou na Clínica, ela falou sobre um trabalho que fizeram de mapeamento de emoções no corpo, que passava por identificar/localizar essas emoções e conversar sobre como se relacionavam com elas e o que poderiam fazer com elas. Ficou um pouco abstrato e senti vontade de ouvir muito mais (que tipo de relato das vivências nas escolas traziam os professores; o que exatamente vem causando adoecimento?), mas entendo que certos testemunhos não devem, de fato, ser compartilhados fora do grupo. Se pensarmos na supervisão psicanalítica, existe a ética de preservar a intimidade do supervisionando, fundamental para que o trabalho possa acontecer, sem ser ameaçado. Acho bonito pensar que o que esses professores viveram ali, só elas e eles podem saber. Nas rodas de escuta entre mulheres mediadas por mim e integrantes da Clínica Pública de Psicanálise, em 2019, no mesmo Sesc Santana que hospedou as salas Zero, propúnhamos sempre um “pacto do grupo”, no início de cada sessão: o que era dito ali, ficava ali. Para que cada mulher se sentisse segura para dizer o que estava precisando dizer.

Juliana dos Santos começou agradecendo a fala de JANAÚ e declarou sentir saudades da sua prática como educadora, do contato direto com grupos, quando a sua única preocupação era imaginar caminhos possíveis para uma visita. Desde 2014 ela segue trabalhando com mediação, mas dedicada ao campo teórico, como pesquisadora, pensando o processo formativo de educadores/professores. Atualmente faz seu doutorado no Instituto de Artes da Unesp, onde é também professora-substituta, na graduação. A sua tarefa vem sendo construir uma história da arte-educação que leve em consideração negros e indígenas, propondo uma descolonização do ensino de arte.

Juliana fez uma fala instigante, em tom crescente de indignação e revolta, provocando-nos a nos mexermos para buscar conhecer ou conhecer mais densamente os muitos nomes e projetos que ela só pôde citar brevemente, como no caso da pedagoga Nilma Lino Gomes, do historiador Manuel Querino, das pedagogias quilombolas e das chamadas “escolas dos homens de cor”, criadas e autogeridas por negras e negros na primeira metade do século XX, em contraposição a toda dificuldade do acesso formal à educação pela população negra ou ao racismo praticado por brancos, inclusive professores, nas escolas. No lugar de relatar como ela abordou cada um desses temas, escolho recomendar, além do registro em vídeo do encontro, a leitura de sua dissertação de mestrado, intitulada Lei 10.639/2003: revendo paradigmas na arte/educação[3].

Aqui no texto irei enfatizar os momentos finais da fala da Juliana, já durante o debate, quando ela voltou a experiências suas no chão de exposição como forma de dialogar com questões que haviam surgido desde a fala de JANAÚ, em torno de adoecimento e cuidado: “Nós educadores somos aqueles que têm que cuidar. A gente acolhe, faz o acolhimento do grupo, organiza a mediação e está lá junto. Quando acontece um B.O., não tem quem segura a gente”. Para exemplificar, contou de duas situações constantes de racismo vividas por ela e outros mediadores em um museu onde trabalhou, sem que recebessem qualquer amparo institucional. A primeira se dava já no início das visitas, quando ela cumprimentava o grupo e tentava começar um acolhimento e professores responsáveis pelos grupos de estudantes olhavam para os lados e diziam a ela que estavam aguardando um educador. Ela afirmava que ela era essa educadora e mesmo assim professores insistiam na sua invisibilização, falando que haviam agendado uma visita e repetindo que seriam recebidos por um educador. Vestindo uniforme do museu e crachá, apresentando-se como educadora por três vezes, mesmo assim não era vista ou respeitada como educadora: “A visita já começava estraçalhada, só que o museu não pagava terapia para mim”.

O segundo caso de racismo reportado por ela no museu era o pedido de professores para que, ao longo da visita, não passassem por nada relacionado ao candomblé. Diziam “queremos uma visita que só fale da história e da cultura do povo afrobrasileiro”, ao que Juliana respondia “olha, não tem como. O eixo curatorial desse acervo é entender as religiões de matrizes africanas. A gente começa com o assentamento de Xangô e termina no catolicismo negro. O que mais tem nesse museu é a figura de Exu”. Explicava, com propriedade, que as educadoras do museu tinham uma abordagem e que, se professores quisessem seguir as suas próprias abordagens, poderiam conduzir suas próprias visitas, sem a necessidade de um educador. “Eu e meus amigos da equipe educativa, a gente era meio cara de pau e a gente não tinha na época uma coordenação que chegasse junto com a gente. A gente não tinha uma coordenação educativa que bancava; a gente não tinha respaldo nem da nossa coordenação. Isso fez a gente se articular muito, se ajudar muito enquanto educadores, inclusive criar um núcleo de pesquisa nosso, que é o NEPAFRO – Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Americanos[4]. E se ajudar. Porque um era da Psicologia Social, outro da História, outro das Artes, outro ‘meu, não tô conseguindo, aconteceu isso na visita’… Quando vinham essas escolas particulares, com uma galera muito rica, a gente dava a visita em dupla. Para que, quando um fosse derrubado, o outro estivesse em pé”.

Escutando JANAÚ e Juliana, ficou claro para mim que as outras mediações evocadas no título do encontro terminaram por ser aquelas que se dão entre educadores. Mediação como cuidado mútuo.

Diante dessa percepção, conversei com a Ju Biscalquin, educadora do Escola e Artes responsável por relatar este mesmo encontro que eu, na publicação do projeto, a ser lançada até fevereiro de 2021, sobre a possibilidade de subvertermos a regra e escrevermos um único relato, juntas. (A publicação com a documentação crítica de cada Sala Zero terá sempre o relato de uma convidada seguido do relato de um educador-curador-mediador do Escola e Artes). A ideia era ficarmos mais fortes juntas e praticar uma escrita como mediação: iríamos buscar JANAÚ e Juliana para que as duas pudessem aprofundar questões destacadas por nós e pensar, com elas, como suas vozes poderiam estar presentes no texto. Se as duas se animassem, a autoria do texto seria uma divisão de responsabilidade entre as quatro.

Como esse processo exigiria mais tempo do que o prazo que eu dispunha para escrever, procurei a instituição. A nossa proposta de um texto comum e mais denso foi bem vinda, mas eu teria que, necessariamente, apresentar também um texto individual. Pensei que uma solução seria fazer um pequeno “antitexto”, que anunciaria que o verdadeiro texto só chegaria junto da publicação, justificando essa decisão baseada no próprio encontro a ser relatado. Comecei estas páginas tendo isso em mente, mas a escrita acabou tomando outro rumo e se mostrando um pouco penosa, no meu cotidiano de mãe de bebê na pandemia, de modo que não terei forças para me dedicar a um novo processo de redação.

Assim, eu gostaria de dizer que este aqui não é o relato que precisa ser feito. A minha tarefa intelectual, neste tema do “outro”, deveria ter sido criar um espaço para que as próprias JANAÚ e Juliana pudessem falar e serem ouvidas. Outras mediações exigem outros relatos, por serem inventados. Se, por um lado, jamais saberemos como poderia ter sido essa escrita entre nós quatro, trouxe o caso para refletirmos sobre a pergunta que levantei ao término do encontro: a instituição que nos adoece pode oferecer cura?

[1] Na divulgação das ações da Clínica pelo JAMAC o nome do projeto figurava como “Clínica de educadores”. Estou usando o nome com linguagem não binária porque foi assim que JANAÚ apresentou a Clínica na ocasião, em um slide, como pode ser verificado no registro em vídeo.

[2] Colaborou Daniel Guimarães.

[3] Unesp, 2017. Versão PDF disponível em: <https://repositorio.unesp.br/handle/11449/153192>.

[4] Ver <https://www.nepafro.org/>.

dezembro de 2020

Graziela Kunsch é artista, educadora e mãe. Desde 2018 integra o projeto Escola e Artes, tendo transformado a função de “coordenação educativa” em um “acompanhamento horizontal”, dialogando com o grupo de educadores como sujeitos criadores da sua própria prática e propondo caminhos para aprofundamento de estudos. Doutora pela ECA-USP, entre 2017-2019 foi professora substituta do curso de História da Arte da Unifesp, tendo mediado as aulas de Arte contemporânea, Arte e política hoje e Laboratório de pesquisas e práticas em história da arte: curadoria e mediação. Editora da revista Urbânia, cujo quinto número aborda práticas de educação democrática (ver naocaber.org/revista-urbania-5). Foi responsável pela formação de público do projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, tornando possível um processo de autoformação de público e o engajamento de ex-moradores da Vila. Seu novo projeto educativo é dedicado à primeiríssima infância (0-3 anos) e pode ser seguido no Instagram: @brincadeira_livre

Eu pensava que era um problema da sala 2 do cinema da Augusta. Foi o segundo filme que vi lá que o povo ria sem parar sem razões aparentes. Mas agora estava lendo umas críticas – não posso ler uma linha antes de ver um filme, mas gosto de ler todas depois de ver -, e percebi que podem ser comuns as risadas durante “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert. (Ao menos aqui em São Paulo, porque na Europa parece que nossos colonizadores ficam horrorizados).

O começo do filme foi um pouco uma tortura para mim. Ver uma atriz tão conhecida nossa fazendo um sotaque que não é o dela e as pessoas rindo a cada gesto da empregada Val como se ela fosse uma estúpida, a própria Regina Casé buscando ser engraçada, me fez pensar em ir embora. Eu e o Dani acabamos rindo um pouco junto ao público, pensando na roubada em que nos metemos, e acho que essa cumplicidade nos segurou mais um tempo no cinema.

Então a Jéssica entrou em cena. (mais…)

– contém spoilers –

Há um momento crucial no final de Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015), que, no entanto, é tão somente uma tela preta. Nesse momento, de ausência de imagem, o filme sai da tela e implica toda a sala de cinema nele. O filme nos convoca, espectadores, a tomar partido no julgamento de um homicídio que nunca aconteceu, a não ser como história ficcional. E deliberar sobre esse assassinato hipotético significa nos posicionarmos sobre uma série de outros assassinatos; estes reais e impunes[1]. (mais…)

Eu possivelmente vi quase todos os shows Encarnado que aconteceram na cidade de São Paulo desde o pré-lançamento do disco, na Casa de Francisca, em 10 de outubro de 2013. Mas ontem foi diferente. Era a segunda vez que eu ia assistir ao show no espaço Serralheria e a primeira experiência lá não tinha sido muito boa; as pessoas conversaram demais, até mesmo num momento que poderia ter sido fortíssimo, quando a luz acabou, no meio da música Ciranda do aborto.

Logo no início, Juçara explicou que esse show pedia concentração. Que quem quisesse conversar poderia ir lá fora, respeitando quem estava ali para viver aquele momento. As pessoas, desta vez, atenderam ao pedido, com pequenas exceções mais para o final. Cada música foi aplaudida longamente, como há muito tempo eu não presenciava. A gente sabia que estava diante de algo precioso e queria demonstrar isso aos músicos.

Mas não foi bem isso que me motivou a escrever. Quando falei que ontem foi diferente, foi porque ontem eu estava diferente. (mais…)

Eu tentei ficar no hall do Cinesesc após a exibição do filme A vizinhança do tigre (Affonso Uchoa, 2013). Mas não deu. Eu precisava sair daquele espaço correndo. Era dia de abertura de mostra e nós, espectadores, éramos servidos a todo momento. Champagne, castanhas e queijo brie com uvas verdes, ou algo parecido com isso. O rap Eu queria mudar, trilha dos créditos finais do filme, ainda estava na minha cabeça.

Eu não conseguia falar e não tinha vontade de falar. No banheiro cruzei pessoas conhecidas e elas perguntaram se eu estava passando mal, pois eu não respondia seus comentários sobre o filme. Acho que eu estava mesmo passando mal. Só lembro de ter ficado assim após ver O prisioneiro da grade de ferro (2003), de Paulo Sacramento, que por acaso viu o filme de ontem a poucos metros de mim. Outros filmes já mexeram comigo e me deixaram sem vontade de conversar, mas em A vizinhança do tigre e O prisioneiro da grade de ferro meu emudecimento foi de outra ordem. Eu me envolvi por seus personagens, torci – e torço – por eles, mas não tenho nenhuma resposta individual a dar que possa tirá-los de suas condições.

Um filme se passa em um bairro periférico de Contagem, Minas Gerais – curiosamente chamado “Nacional” (poderia ser qualquer outra quebrada no Brasil) – e o outro dentro do complexo penitenciário Carandiru, meses antes da sua demolição. Nos dois casos não parece haver saída. Mesmo que os meninos de A vizinhança do tigre estejam soltos e que a sua condição seja muito melhor do que seria em uma cadeia, não parece haver esperança de mudança. (mais…)

Tem uns errinhos de digitação na entrevista que o Sávio Vilela fez com o Kiko Dinucci. Ao ler a entrevista, o meu olhar de editora não pôde evitar parar para anotar esses detalhes, pensando em mandar para o Sávio de repente corrigir no site dele depois. São detalhes como o “s” que falta na palavra “Guarulho”, ou a grafia correta do sobrenome do Itamar Assumpção, não “Assunção”. Transcrição e edição de falas orais é um troço difícil de fazer, e se a gente fica muito perfeccionista acaba não publicando nada. Mas o que eu ia dizer é que, no meio desses erros de digitação, achei um erro que não é erro. É um ato falho. E nesse pequeno deslize de transcrição, mais precisamente a troca de uma letra “o” pela letra “u”, o Sávio construiu a frase que poderia resumir a entrevista inteira: “Fui uma puta escola de música para mim”, teria dito o Kiko.

Na verdade o Kiko se referia a um clube da CMTC, perto da estação Armênia, como uma escola de música para ele. Esse local onde pessoas se reuniam para jogar futebol de várzea e fazer roda de samba “foi” uma puta escola para ele. Mas não foi apenas obra do acaso que fez o Sávio trocar o “foi” pelo “fui”, ou talvez o próprio Kiko, ao telefone, ter dito “fui” ao invés de “foi”. A entrevista demonstra, a todo momento, que a escola do Kiko – que na educação formal fez até o ensino médio – foi ele mesmo. (mais…)

No sábado desci no metrô Sé perto de 15h. Eu sabia que às 15h teria início uma apresentação do Coletivo Cartográfico, que aproxima dança e performance, e que aconteceria na Praça da Sé. O trabalho se chamava “Instruções para o colapso”. Ao chegar na praça comecei a procurar pelas meninas do grupo. A primeira coisa que encontrei foi um homem deitado no chão, sem nada por baixo, no meio da praça. Aquilo já seria parte do espetáculo de dança? Não e sim, talvez. Andei mais um pouco e encontrei uma segunda pessoa caída no chão. Aos poucos, olhando em volta, comecei a perceber diversos corpos – alguns deitados, outros caídos – por toda a praça. Lá na frente, na escadaria da catedral, as três meninas começaram a descer os degraus rolando, corpo inteiro no chão, bem lentamente. A escadaria estava cheia e pessoas foram se aglomerando para tentar entender o que aquelas meninas estavam fazendo. Na pequena multidão que se formou havia pessoas como eu, que tinham ido até a praça às 15h, para ver um trabalho de dança, e outras que ficaram instigadas pela situação, mas que muito rapidamente perceberam que se tratava de alguma encenação. Apenas quem não identificou esse limite entre vida e atuação foram alguns moradores de rua, em especial uma moradora, que de longe parecia embriagada, e ameaçou uma das dançarinas fisicamente. Daquela distância não dava para saber o que ela estava dizendo, mas era ela quem tornava a apresentação mais contundente. (mais…)

Hoje vi “Esse amor que nos consome”, de Allan Ribeiro, com Rubens Barbot e Gatto Larsen, e aos poucos o filme foi me encantando. Eu tinha batido o olho em frases de uma crítica na revista Cinética que citava “a mais bela sequência” do filme, antes de vê-lo, sem saber qual sequência seria essa. Conforme assistia ao filme tomei nota de várias sequências ou cenas lindas… Os dois dançarinos que dividem o guarda-chuva, o improviso de Rubens que coincide com o único momento improvisado da câmera (que ao menos sugere ser uma câmera improvisada), o pano sobre a placa, a primeira vez que se fala em exu lá embaixo, a senhora engraçada que depois soube que é atriz-personagem de outros filmes do diretor, entre outras tantas cenas, até mesmo a que nunca chegou a ser filmada, da placa de vende-se voando com o vento… Impossível não ver o filme sorrindo, e impossível não chorar ao ouvir o diretor contar que, após ver o filme, o proprietário do imóvel decidiu não vendê-lo mais. Sempre bom ser surpreendida com um trabalho coletivo tão bonito.

No texto de apresentação da exposição “A respeito de situações reais” (São Paulo, Paço das Artes, 2003), o crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet comenta o recrudescimento da produção de documentários no Brasil. Para ele, o público relativamente numeroso de um filme como Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002), entre outros documentários brasileiros, criava um quadro favorável à abertura de um amplo debate sobre o documentário. Debate que ele próprio iniciou: “pode-se observar que, de par com o aumento da produção e uma relativa variedade de assuntos, existe uma certa pobreza de dramaturgia. Prevalecem métodos descritivos e o recurso à entrevista, em detrimento de outras estratégias, de outras formas de narração, investigação, observação e análise”[1]. Mais de quatro anos depois, com o lançamento de Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007) e de Santiago (João Moreira Salles, 2007), as palavras visionárias de Bernardet parecem ganhar forma. O que ele próprio reconhece, ao afirmar que os dois documentários são “a prova de que o ensaio filosófico é possível no cinema, não como falação ilustrada por imagens, mas pelo aproveitamento e aprofundamento dos recursos da linguagem cinematográfica”[2].

O recurso utilizado por Jogo de cena é, nada mais, a verdade proporcionada pelo cinema. Uma verdade não muito verdadeira, a começar pelo seus nomes técnicos: “impressão de realidade” ou “efeito do real”. (mais…)

Em quase todos os testes de atores apresentados em Salve o cinema (1995), Mohsen Makhmalbaf pede que as pessoas chorem “de verdade”, para que veja se sabem interpretar. Ele conta até dez, exigindo que os atores derramem lágrimas neste intervalo de tempo. Uma menina, em um dos primeiros testes, derrama uma lágrima. Mas o diretor-ator quer mais. Ela lhe havia dito que queria participar de seu filme para tentar ir embora do Irã, para poder se casar com o homem que ama. Se o filme fosse para o festival de Cannes, ela imaginou que poderia ir também. E ele pede que ela chore mais. Ela não consegue. Makhmalbaf lhe pergunta repetidas vezes: “É este o tamanho do seu amor”? (mais…)

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